Se há uma coisa que devemos retirar do pensamento de Nietzsche é sua noção de moralidade e justiça. Pois ela não é platônica, idealizada, utópica, ao ponto de edificar — apenas em abstração — um mundo de “perfeição moral” sobre este nosso mundo verdadeiro, da realidade... o qual, de fato, não é tão bonitinho e inofensivo como muitos gostariam.
Por outro lado, essa noção nietzscheana de moralidade e justiça também não pende — como muitos crêem, por ignorância de seus escritos — para o outro extremo, de um mundo absolutamente maligno, despótico, de um incessante fluxo de ódio, anarquia e destruição, como realmente se poderia supor a partir de um ponto de vista ressentido (esse que, aliás, será demonstrado como o grande erro na consideração do problema).
Para quem só está disposto a aceitar como justa a vida em alguma espécie de paraíso, a existência real nunca será mesmo satisfatória, e aliás também nunca será nada além de um inferno, ou de um purgatório. Por isso, àqueles que concebem o caráter perigoso e dinâmico da vida como algo de totalmente inaceitável, ou moralmente injustificável, só restam duas expectativas: aguardar, como um santo ou como um pecador resignado e arrependidinho, pelo suposto paraíso vindouro... ou buscar prevalecer, como um demônio ensandecido, no suposto inferno desta vida.
E qual não é a surpresa quando constatamos que ambas as posições são, em geral, tomadas igualmente pelo mesmo tipo, isto é, o sujeito ressentido, que não suporta esta existência, que a enxerga como um inferno cósmico? Pois essa é a psicologia tanto do comunista quanto do cristão, e por isso mesmo o esquema metafísico e ontológico de ambos se constrói a partir das mesmas reações rancorosas, dos mesmos afetos ressentidos — como em breve ficará claro na leitura dos aforismos de Nietzsche.
O outro extremo de só poder aceitar um mundo que seja absolutamente inofensivo e pacífico, isto é, só conseguir conceber um mundo que seja absolutamente maligno e despótico, consiste afinal no resultado esperável de uma mente fragmentada, que oscila entre dois pólos opostos, e que por fim gera uma conduta ambígua, inconscientemente oscilatória, como um pêndulo esquizofrênico que se move entre o amor e o ódio extremos.
Esse é o caso de vermos tantos que se dizem de esquerda ostentando um pacifismo demagógico de retardado (ou de cínico), que pretende desarmar os cidadãos e destitui-los de seu direito natural de castigar ou eliminar um bandido, como se a resposta para todos os males do mundo só pudesse ser o carinho e o amor distribuídos de maneira gratuita — ao passo que esses mesmos esquerdistas, contaminados que estão por uma cosmovisão reativa e rancorosa, também só conseguem conceber este mundo como injusto, odioso, enganador, falso, cruel, e no qual portanto somente o ódio, a malícia, a injustiça, o engodo, a falsidade, serviriam de atributos positivos para efetivamente se alcançar qualquer objetivo: até mesmo a máxima justiça, a paz absoluta!
Assim que temos tipos como Lenin, Stalin, Roosevelt, Truman, Fidel Castro, Che Guevara, Mao Tse-Tung, Pol Pot, Kim Jong-il, todos líderes de esquerda que mantinham sob seu discurso político a promessa de um “bem maior e supremo”... pelo que então puderam justificar, rasteiramente, um “mal maior e supremo”!
O cristão, se analisarmos a fundo sua crença, também espera por uma espécie de utopia, só que em moldes metafísicos: o “paraíso” onde todos viveriam em eterna paz e harmonia, bem providos por um poder divino centralizado, monopolizado — afinal monoteísta —, sustentados sobre uma divina “ordem jurídica concebida como geral e soberana” (nas palavras de Nietzsche, ao criticar o sistema pretendido pelos comunistas), que não mais permitiria a luta, a disputa, a competição, a evolução, enfim, a dinâmica natural da vida.
Isso tudo é o que esperam, que almejam, que sonham os cristãos, na mesma verve utópica dos comunistas e esquerdistas; e da mesmíssima forma, impulsionados pelos mesmos afetos reativos de rancor, igualmente esperam, almejam, sonham com uma revolução capaz de trazer isso tudo, de uma vez por todas, às custas das mais altas, largas e dolorosas labaredas expiatórias.
No reservatório inconsciente do cristianismo, essa grande fome por carnificina, por genocídio, por expiação em massa, em suma, essa grandiosa revolução redentora capaz de trazer o “admirável plano novo” ganha o pomposo nome de ‘Juízo Final’ — a concretização teórica de todos aqueles impulsos de ódio reprimidos —, situação essa que justificaria, ontológica ou metafisicamente, a promessa de seu belo paraíso... pois que esse só se encontra no além (tanto faz se temporal ou celestial), através de pura abstração da realidade a que temos acesso, o mundo natural dos fenômenos reais, tal como sempre existiu e sempre pôde ser observado em suas leis básicas.
O ‘Juízo Final’, o ‘Apocalipse’ (‘Revelação’), o ‘Inferno Cristão’, constitui, desse modo, a projeção reativa, ressentida, rancorosa, de um cenário de terror em que haveria uma brusca ruptura da ordem real (em suas leis básicas, dinâmicas, evolutivas...), com uma suprema ordem totalmente estática erigida a partir de um evento totalmente catastrófico, tenebroso, caótico (‘ordo ab chao’)... o que então poderia justificar, em teoria, a crença no eterno paraíso — e não em uma simples continuidade da vida neste plano de existência, mantendo-se, contudo, os mesmos princípios e leis primordiais já observáveis (como a dinâmica e a evolução natural da vida).
Não por acaso essa visão “revelada” ao profeta soa tão similar às visões reais que já pudemos verificar, em doses homeopáticas, no genocídio de alemães, japoneses, chineses, armênios e palestinos, e na incineração compulsiva de hereges em fogueiras da Santa Inquisição (que houve na Idade Média, porém de forma ainda mais brutal na Idade Moderna, como na Inquisição Espanhola dos séculos XVI ao XIX), e em tantos outros episódios semelhantes que se estendem, em casos particulares, por toda a história, e que compartilham todos do mesmo pathos revolucionário nascido nos delírios de um Stalin, um Robespierre, um Torquemada.
E não por acaso, também, essa revelação apocalíptica do cristianismo é incrivelmente similar às visões “reveladas” ao judeu Marx, quando esse, por exemplo, afirmava que o destino dos opositores dos objetivos comunistas era o de “perecerem no holocausto revolucionário.” O destino dos infiéis, que se apõem aos objetivos do cristão, também seria, no sistema de crença desse, o de perecerem no holocausto revolucionário, o qual aqui já se identifica com o inferno, o mar de fogo em que são queimadas hordas inteiras de adversários da fé cristã, após o tal “juízo final”.
Pois bem, seguem então os aguardados aforismos de Nietzsche, tirados de sua obra ‘Genealogia da Moral’:
***
— Alguém deseja descer o olhar sobre o segredo de como são fabricados os ideais na terra? Quem tem coragem para tanto? ...Muito bem! Aqui abre-se a vista a esta oficina negra! ...Mas espere ainda um instante, senhor curioso e destemido: seus olhos devem primeiro acostumar-se a esta luz fraca e trêmula... Certo! Basta! Fale agora! Que sucede ali embaixo? Diga o que vê, homem da curiosidade temerária — agora sou eu quem escuta.
— Eu nada vejo, mas por isso ouço muito bem. É um cochichar e sussurrar cauteloso, soturno, rumorejante, vindo de todos os cantos e fissuras. Parece-me que mentem; uma suavidade doce e pegajosa escorre de cada som. A fraqueza é mentirosamente transmudada em mérito, não há dúvida. É como você disse.
— Prossiga!
— E a impotência que não consegue acertar contas é transmudada em ‘bondade’; a timidez covarde, em ‘humildade’; a submissão a quem se odeia, em ‘obediência’ (na verdade há alguém que, dizem, ordena esta submissão — chamam-no Deus). O que há de inofensivo no fraco, a própria covardia na qual é pródigo, seu aguardar na soleira da porta, sua inelutável espera pela morte, recebe aqui o bom nome de ‘paciência’, também denominado como ‘virtude’; o não-poder-revidar chama-se não-querer-revidar, talvez até mesmo perdão (“pois não sabem o que fazem; só nós sabemos o que fazem!” [Lucas 23.34]). Falam também do “amor aos inimigos” — e como suam ao falar disso!
— Prossiga!
— São miseráveis, não há dúvida, esses falsificadores e cochichadores dos becos escondidos, ainda que fiquem de cócoras e apertados entre si para se aquecerem. Mas eles me dizem que sua miséria é uma eleição e distinção por parte de Deus; talvez essa miséria seja apenas uma preparação, uma prova, um treino, talvez ainda mais... algo que um dia será recompensado e pago com juros altíssimos, em ouro... não!, em felicidade! A isto chamam “bem-aventurança”.
— Prossiga!
— Agora me informam que não apenas são melhores que os poderosos, os senhores da terra cujo escarro têm de lamber (não por medo, de modo algum!, mas porque Deus lhes ordena a respeitarem essa autoridade [Romanos 13.1]), mas também “estão melhores”, ou de qualquer modo estarão algum dia. Mas basta, basta! Não agüento mais. Que ar ruim! Que ar ruim exala desta oficina onde se fabricam os ideais! Minha impressão é de que está fedendo a mentira!
— Não! Um momento! Você ainda não falou do golpe de mestre desses nigromantes, que transformam todo negror em brancura, em leite, em inocência; não notou a consumada perfeição de seu refinamento, o seu mais ousado, sutil, ardiloso e mendaz truque de artista? Preste atenção! Esses animais freqüentadores de taverna cheios de ódio e vingança — no que eles transformam precisamente o ódio e a vingança? Você ouviu suas palavras? Você suspeitaria, se pudesse ouvir apenas suas palavras, que esses que agora estão a sua volta não passam de homens de ressentimento?...
— Compreendo; abrirei de novo meus ouvidos (ah!, e taparei meu nariz!). Somente agora escuto o que tanto dizem: “Nós, pessoas boas — nós somos os justos” — O que eles aspiram não chamam de retaliação, mas de “triunfo da justiça”; o que eles odeiam não é seu inimigo, oh não!, mas a “injustiça”, a “falta de Deus”; o que eles acreditam e esperam não é a perspectiva de vingança, a embriaguez da doce vingança (“mais doce que mel”, como apontou Homero [Ilíada XVIII]), mas a vitória deste Deus ‘justo’ sobre os ímpios; o que lhes resta para amar na Terra não são os seus irmãos no ódio, mas seus “irmãos no amor” [Primeiro Tessalonicenses 1.3], como dizem todos eles, os bons e justos da Terra.
— E como chamam aquilo que lhes serve de consolo por todo o sofrimento do mundo? Como chamam a fantasmagoria da sua futura e antecipada bem-aventurança?
— Quê? Estou ouvindo bem? A isto chamam de “Juízo Final”, o advento de seu reino, do “Reino de Deus”... Mas por enquanto vivem “na fé”, “no amor”, “na esperança” [Primeira Epístola aos Coríntios 13.13] .
— Basta! Basta!
(Genealogia da Moral; Primeira Dissertação; Aforismo 14)
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Fé em quê? Amor a quê? Esperança de quê? Esses fracos, é certo que também eles desejam ser os fortes algum dia, não há dúvida; também o seu “reino” deverá vir: chamam-no simplesmente o “Reino de Deus”, como vimos. São mesmo tão humildes em tudo! Para alcançar isto é preciso viver uma vida longa, que ultrapasse a própria vida. É preciso a “vida eterna” para ser eternamente recompensado no “Reino de Deus” por essa existência terrena “no amor, na fé, na esperança”.
Recompensado pelo quê? E como?... Parece-me que Dante enganou-se grosseiramente quando, com espantosa ingenuidade, colocou sobre os portões de seu inferno a inscrição “também a mim criou o eterno amor” [Divina Comédia, Inferno III 5-6] — em todo caso, seria mais justificado se na entrada do paraíso cristão e sua “beatitude eterna” estivesse inscrito: “também a mim criou o eterno ódio” ...supondo que uma verdade pudesse figurar sobre a porta que leva a uma mentira!
Pois o que é a beatitude desse paraíso? ...Talvez já pudéssemos adivinhar; mas é melhor o expressivo testemunho de alguém cuja autoridade na matéria não se subestima: Tomás de Aquino, o grande mestre e santo. Diz ele, com a docilidade de um cordeiro: “Beati in regno coelesti videbunt poenas damnatorum, ut beatitudo illis magis complaceat” [“Os abençoados no reino celeste verão as penas dos danados, para que sua beatitude lhes dê maior satisfação” — Suma Teológica, Suplemento à Terceira Parte, questão XCVII, artigo i, ‘conclusio’]. Ou, querendo-se ouvir o mesmo conteúdo em tom mais forte, por exemplo da boca de um triunfante Pai da Igreja [Tertuliano] que desaconselha seus cristãos as volúpias cruéis dos espetáculos públicos... mas os desaconselha a isto por quê? Diz ele (De Spectaculis, cap. 30 ss.):
“A fé nos oferece muito mais, uma coisa muito mais forte; graças à redenção, dispomos de alegrias inteiramente diversas; em lugar dos atletas, temos nossos mártires; se queremos sangue, ora, temos o sangue de Cristo... mas o que é isto diante do que nos espera no dia de seu retorno, de seu grande triunfo!”
E ele continua, o visionário extasiado:
“Mas há ainda outro espetáculo... aquele último e perpétuo dia do juízo final, aquele dia não esperado e até escarnecido pelas nações, quando toda a antigüidade e tantas gerações serão consumidas num só fogo. Quão vasto será então este espetáculo! Como o contemplarei admirado! Como rirei! Como me alegrarei! Como exultarei, vendo tantos e tão grandes reis, de quem se dizia estarem já no céu, gemendo nas mais profundas trevas, junto ao próprio Júpiter e às testemunhas de sua apoteose. Do mesmo modo os governadores das províncias, perseguidores do santo nome, derretendo-se em chamas mais cruéis que aquelas com que eles insolentemente maltrataram os cristãos! E também aqueles sábios filósofos, que diante de seus discípulos tornam-se rubros ao se consumirem no fogo, e, juntamente com eles, os que foram persuadidos de que nada importa a Deus, e de que as almas não existem ou não retornarão aos mesmos corpos de antes! Os poetas também, a tremerem, não diante do tribunal de Radamanto ou de Minos, mas daquele do Cristo inesperado! Então melhor se escutará esses autores, isto é, melhor serão ouvidos seus clamores (melhor o clamor, maiores os berros) em sua própria tragédia; então se reconhecerá os mais expressivos atores de pantomima, ainda mais facilmente por causa das chamas em que estarão se debatendo; então se verá aquele que representou como o cocheiro olímpico, todo rubro na verdadeira carruagem flamejante; então se contemplarão os atletas, não no ginásio, mas na fogueira; a não ser que eu nem queira ver esses espetáculos, pois antes prefira dirigir um olhar insaciável de gozo àqueles que maltrataram o Senhor: ‘Eis ele’, direi, ‘o filho do carpinteiro e da prostituta (como o chamaram os judeus), o destruidor do Sabbath [Sábado], o Samaritano, o que diziam ter o diabo. Eis aquele que comprastes de Judas, aquele que foi castigado com açoites e bofetadas, que foi humilhado com escarros, a quem foi dado de beber fel e vinagre. Eis o corpo daquele que, segundo vocês, os próprios discípulos roubaram às escondidas de sua tumba, para que se mentisse que havia retornado dos mortos, ou que o agricultor removeu para que suas verduras não fossem estragadas pelo grande número de peregrinos’. Tais visões, tais alegrias, que governador, ou cônsul, ou sacerdote, te poderia oferecê-las de sua própria generosidade? E no entanto, de certo modo, já as possuímos mediante a nossa fé, presente no espírito concebido. De resto, como são aquelas coisas que ‘nem o olho viu, nem o ouvido ouviu, nem chegaram ao coração do homem?’ (1 Cor. 2,9), creio que são mais agradáveis que o circo, que ambos os teatros [cômico e trágico], e que todos os estádios.”
Per fidem: assim está escrito.
(Genealogia da Moral; Primeira Dissertação; Aforismo 15)
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Agora uma palavra crítica sobre as recentes tentativas de se buscar a origem da justiça num terreno bem estranho: o do ressentimento. Antes direi no ouvido dos psicólogos [os interessados em compreender a mente humana], supondo que algum dia queiram estudar de perto o ressentimento: hoje esta erva daninha floresce de modo mais espetacular entre os anarquistas e anti-semitas, aliás onde sempre floresceu, na sombra, como a violeta, embora com outro aroma. E assim como daquilo que é igual sempre brotarão seus iguais, não é de se surpreender que precisamente desses círculos se vejam surgir tentativas, como já houve várias, de sacralizar a vingança sob o nome de justiça — como se no fundo a justiça fosse apenas uma evolução do sentimento de estar ferido — e depois promover, com a vingança, todos os afetos reativos. Quanto a esse ponto, eu não teria tanto o que objetar: a consideração do problema biológico em seu conjunto (em relação ao qual o valor dos afetos não tem sido suficientemente levado em conta) me parece até mesmo um mérito.
O que gostaria de sublinhar é que, em tal circunstância, essa nova nuance de justificação científica (em favor do ódio, do despeito, da inveja, da suspeita, do rancor, da vingança) nasce do próprio espírito de ressentimento. Pois essa “justificação científica” se detém muito cedo num determinado aspecto [o reativo], dando lugar a desvios de parcialidade e inimizade mortal, quando, me parece, um outro grupo de afetos é que possui um valor biológico bem mais elevado que o dos afetos reativos, e que, portanto, mereceria ser cientificamente validado, além de muito estimado: os afetos propriamente ativos, como a vontade de dominar, o desejo de possuir, e outros assim. Apenas isto a dizer contra essas tendências (E. Dühring, ‘O Valor da Vida: Um Curso de Filosofia’; de fato, em todas suas obras).
Mas quanto à afirmação específica de Dühring, de que a fonte da justiça encontra-se no terreno do sentimento reativo, é preciso, em prol da verdade, contrapor-lhe bruscamente com a afirmação inversa: o último terreno conquistado pelo espírito da justiça é o do sentimento reativo! Quando acontece realmente de observarmos o homem ser justo até mesmo com quem lhe prejudica (e não apenas frio, comedido, distante, indiferente: pois ser justo implica sempre em uma postura ativa), quando a elevada, clara, branda e também profunda objetividade do olho justo, do olho que julga, não se turva sequer ante o assalto da injúria pessoal, do escárnio e da calúnia, bem, isto é sinal de perfeição e suprema maestria, — algo, inclusive, que prudentemente não se deve esperar e em que não se deve facilmente crer. É certo que, no geral, mesmo para as pessoas mais honradas, basta uma pequena dose de agressão, malícia, insinuação, para lhes fazer subir o sangue aos olhos e assim perder de vista a imparcialidade.
Porém, o homem ativo, agressivo, que até mesmo se excede, está sempre muito mais próximo da justiça do que o homem reativo, omisso, covarde; pois ele não está necessariamente preso a uma avaliação parcial e falsa do problema, como sempre acontece com o homem reativo. Assim, efetivamente, o homem agressivo, como o mais forte, nobre, corajoso, em todas as épocas conservou o olhar mais claro, a consciência mais livre: inversamente, já se sabe quem carrega consigo a invenção da “má consciência” — o homem de ressentimento!
Afinal, consultemos a história: a qual esfera, até o momento, tem pertencido em seu conjunto a administração do direito, e também a própria exigência de direito? Seria porventura à esfera dos homens reativos? De modo algum; mas sim à dos ativos, fortes, espontâneos, agressivos. Em termos históricos, o direito na terra representa justamente — seja dito para desgosto do já mencionado agitador [E. Dühring] (o qual faz ele mesmo esta confissão: “a doutrina da vingança atravessa todos os meus trabalhos e esforços como um fio vermelho de justiça”) — a luta travada contra os sentimentos reativos, a guerra que lhes movem os poderes ativos e agressivos, que utilizam parte de sua força para conter os desregramentos do pathos reativo, mantendo-os sob controle e dentro dos limites, e assim impor um acordo.
Em toda parte onde se exerce e se mantém a justiça, vemos um poder mais forte que busca meios de, entre os mais fracos a ele subordinados (grupos ou indivíduos), dar fim ao insensato furor do ressentimento, seja retirando das mãos da vingança o objeto do ressentimento, seja substituindo a vingança pela luta contra os inimigos da paz e da ordem, seja engendrando, aconselhando ou mesmo forçando compromissos.
Mas o que a máxima autoridade faz e impõe, de modo determinante, contra a vigência dos sentimentos de reação e rancor — o que sempre faz, tão logo se sente forte o bastante —, é a instituição de um sistema de leis, a declaração imperativa sobre o que a seus olhos é permitido e justo, ou proibido e injusto: após a instituição da lei, ao tratar abusos e atos arbitrários de indivíduos e grupos como crime, como violação da lei, como revolta contra a autoridade mesma, ela desvia a atenção de seus subordinados do dano imediato causado por tais ofensas, e assim consegue afinal o oposto do que deseja a vingança, a qual enxerga e faz valer somente o ponto de vista do prejudicado —: daí em diante o olho é treinado para uma avaliação sempre mais impessoal do ato, e passa a considerar até mesmo o olhar do prejudicado (mas este por último, como já se observou). — Segue-se que “justo” e “injusto” passam a existir apenas a partir da instituição da lei (e não, como quer Dühring, a partir do ato ofensivo). Falar de justo e injusto em si é absurdo; em si, ofender, violentar, explorar, destruir não podem naturalmente ser algo “injusto”, na medida em que, na sua essência, isto é, em suas funções básicas, a vida atua ofendendo, violentando, explorando, destruindo, não podendo em absoluto ser concebida sem esse caráter.
É preciso inclusive admitir algo ainda mais difícil: que, do mais alto ponto de vista biológico, os estados jurídicos não podem senão ser estados de exceção, enquanto restrições parciais da verdadeira vontade de vida, que busca o poder e a cujos fins gerais tais estados se subordinam como meios particulares: isto é, como meios de criar unidades de poder superiores. Uma ordem jurídica concebida como geral e soberana, não como meio para o uso na luta entre complexos de poder, mas como meio contra toda luta — mais ou menos segundo o clichê comunista de Dühring, de que toda vontade deve considerar toda outra vontade como igual —, seria um princípio hostil à vida, uma fator de dissolução e destruição do homem, um atentado ao futuro do homem, um sinal de cansaço, um caminho sinuoso para o nada.
(Genealogia da Moral; Segunda Dissertação; Aforismo 11)
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