quarta-feira, 20 de maio de 2015

Análise do artigo de Sherry B. Ortner, ‘Is Female to Male as Nature is to Culture?’ - Excerto






   “Uma segunda dimensão, intimamente relacionada com essa, parece ser a relativa subjetividade vs. relativa objetividade: Chodorow cita o estudo de Carlson (1971), o qual conclui que 'machos representam experiências de si, de outros, do espaço e do tempo por meios individualistas, objetivos e distanciados, enquanto as fêmeas representam experiências por meios relativamente interpessoais, subjetivos e imediatos'. Embora esse e outros estudos tenham sido feitos em sociedades ocidentais, Chodorow vê seus achados sobre as diferenças entre personalidade de macho e de fêmea como 'diferenças gerais e quase universais' — a grosso modo, homens são mais objetivos e inclinados a se relacionar em termos de categorias relativamente abstratas, e mulheres são mais subjetivas e inclinadas a se relacionar em termos de fenômenos relativamente concretos.”


   Antes de tudo, é necessário esclarecer que estas palavras, ‘individualista’, ‘objetivo’, ‘interpessoal’ e ‘subjetivo’, para que sejam aqui entendidas no sentido adotado pela autora, devem então ser decodificadas a partir do contexto por ela utilizado. Em um contexto carregado de concepções feministas (portanto esquerdistas), como é o caso, é certo que, diferente do sentido geral que se costuma empregar para essas palavras — sentido cuja origem em nosso vocabulário usual, ainda que leve a concepções também equivocadas, de qualquer forma aponta para outros caminhos semânticos —, elas estão transmitindo uma idéia muito específica e tendenciosa.

   Por exemplo, quando é dito, citando-se Chodorow e Carlson, que os homens “representam experiências por meios relativamente individualistas e objetivos” e as mulheres, “por meios interpessoais e subjetivos”, os sentidos de ‘individualista’ e ‘objetivo’, aqui, têm como intuito a atribuição de um caráter pejorativo ao homem, enquanto os sentidos de ‘interpessoal’ e ‘subjetivo’, um caráter favorável à mulher.

   Assim, de acordo com a leitura enviesada da autora, a relação que o homem estabelece com o âmbito externo (público) implica que ele seja mais frio, distante, impessoal, lidando basicamente com categorias abstratas — e por isso é mais “objetivo”. E na relação com o âmbito interno (particular), ele tende a ser mais egoísta, e por isso é “individualista” – isto é, ele não pensa tanto nas outras pessoas, mas quase somente em si mesmo, na própria individualidade.

   A mulher, em favorável contraste, teria então um caráter positivo em ambas as posições (na relação com os âmbitos externo e interno, ou seja, tanto no público quanto no particular) — pois note-se que, nesse ponto, uma das preocupações sutis da autora é, na verdade, ignorar sorrateiramente a própria simetria que ela havia considerado, de homem-público-externo vs. mulher-particular-interno, e já mostrar que a mulher é superior até mesmo no âmbito externo, o que nessa nova relação simétrica faz com que o homem também adquira uma dimensão interna, só que igualmente inferiorizada. Assim, na relação com o âmbito externo (público), a visão da mulher é interpessoal, pois de maneira distinta do homem — que é individualista —, ela tem maior consideração pelas outras pessoas, ou seja, é mais generosa. E na relação com o âmbito interno (particular), é mais subjetiva, já que diferentemente do homem — que é mais objetivo —, ela não encara as coisas, as pessoas e os sentimentos em termos distanciados de categorias abstratas, frias e impessoais, mas por um vínculo próximo e direto estabelecido a partir de si própria, enquanto sujeito concreto, real, caloroso, afetuoso e meigo.

   *[note-se, também, que à negativa relação masculina com o âmbito externo (a objetividade na esfera pública) se contrapõe a positiva relação feminina com o âmbito interno (a subjetividade na esfera particular); e à negativa relação masculina com o âmbito interno (o individualismo na esfera particular) se contrapõe a positiva relação feminina com o âmbito externo (a visão interpessoal na esfera pública). Esse foi, aparentemente, o artifício encontrado pela autora — evocando os estudos de Chodorow e de Carlson — a fim de provar sua tese; e embora a relação simétrica seja em parte desrespeitada — pois temos inversões entre as comparações dos termos —, o fato de as inversões ocorrerem simetricamente nos dois casos, de forma permutada, a torna relativamente aceitável, ou ao menos possível de ser analisada.]

   Vê-se, portanto, que nesse sutil jogo de palavras o que se tem, de maneira meio camuflada, é a intenção de caracterizar o homem negativamente, e a mulher positivamente. Contudo, é possível também abstrair dessas palavras escolhidas, e da compreensão sugerida na leitura delas feita nesse enquadramento específico, um sentido mais amplo e geral — no qual aliás a própria autora precisou se fixar antes de empreender a sobreposição ideológica do pretendido sentido feminista —, e que, assim, fornecerá uma idéia um pouco mais clara e isenta acerca das razões para que o homem seja, em geral, considerado o gênero “objetivo e individualista”, e a mulher o gênero “subjetivo e interpessoal”.

   Agora podemos interpretar o sentido de objetividade como uma disposição para manter a atenção no objeto, isto é, no outro; e, do mesmo modo, subjetividade como uma disposição para manter a atenção no “sujeito”, ou melhor, em si mesmo enquanto ‘objeto subjetivado’ (pois dentro deste fenômeno, que já é a princípio de objetivação, esse “sujeito” consiste muito mais no objeto do outro). Assim, é possível compreender por que o homem é mais objetivo e a mulher mais subjetiva. Ora, o homem, sendo mais seguro de quem é, daquilo que representa seu próprio ‘sujeito’, atenta-se muito mais ao objeto (o objetivo), já que atingi-lo é o que garantirá seu sucesso. Enquanto isso, a mulher, sendo ela própria este objeto/objetivo da existência, deve colocar uma atenção maior em si mesma, com o intuito de se tornar atrativa ao homem, pois seu sucesso não está tanto em alcançar algo, mas em ser alcançada pelo outro (no caso, pelo macho).

   Além disso, como propõe o texto de Ortner, o homem seria mais “individualista”, enquanto a mulher seria mais “interpessoalista” — ou, em um termo menos eufemístico, “coletivista”. Pois o homem, sendo o sujeito da existência, é, desse modo, aquele que busca tomar para si o objeto; enquanto a mulher, sendo o próprio objeto da existência, é quem, nessa relação, acaba tendo que ceder e se doar mais (em vez de se impor e conquistar, como prefere o homem). Isso se reflete no caráter de ambos: o homem é mais individualista, nesse sentido, pois costuma considerar antes a própria situação; já a mulher, em compensação, costuma considerar primeiro o outro — e isso faz com que ela seja mais “coletivista”, isto é, mais preocupada com a situação alheia (o “coletivo”).

   Desse modo, vemos que o caráter “individualista e objetivo” do homem, assim como o caráter “interpessoal e subjetivo” da mulher, pouquíssimo têm a ver com o sentido simplório de “frieza” vs. “calor” (menos ainda de “mediado” vs. “imediato”, como fica provado na outra sessão) no trato com as coisas, sentimentos e pessoas, mas com o sentido de função exercida no quadro maior de interação da existência humana (refletindo a própria existência cósmica como um todo). 

   O homem é “individualista” não porque seja necessariamente mais egoísta, mesquinho ou ganancioso, mas pelo fato de que manter em si o ponto de partida dos acontecimentos constitui uma das funções primárias da realidade, e uma das condições básicas da vida. E é objetivo não porque tenda a se relacionar de modo friamente distanciado e abstrativo, mas porque cercar um objeto e ter uma abertura maior da visão também se liga a um aspecto primordial do universo (o qual se identifica com o infinito expandido, que engloba em vez de ser englobado).

   Já em se tratando da mulher, podemos dizer que ela é “subjetiva” não porque encare as relações de modo mais concreto, pessoal, caloroso, mas pelo fato de que estar cercada por algo maior e ter uma percepção mais reduzida, direcionada ao âmbito interno e às proximidades de si, constitui um aspecto mais particularizado e comprimido do universo, e uma das funções secundárias da existência, da vida — a função que é, pois, do objeto, o qual em sua própria perspectiva pode se converter em sujeito (ou, como sugeri, em ‘objeto subjetivado’); pelo que também se explica o fato de aquilo que é ‘subjetivo’ aparecer sempre, na nossa habitual linguagem, como mera reação ao que é ‘objetivo’, ainda que o sujeito seja mais importante que o objeto: é que, no caso de tal terminologia comumente difundida, vemos ocorrer aí uma inversão implícita do valor semântico de ambos; isto é, a objetividade, no fundo, refere-se ao sujeito (pois o sujeito é quem pode ser objetivo), e a subjetividade ao objeto (em simples reação simétrica àquele). E tem a mulher uma visão interpessoal — ou coletivista — não porque seja necessariamente mais generosa, mas porque essa se liga, também, às funções básicas do objeto: sua própria constituição física e psíquica encontra-se, afinal, posicionalmente oferecida ao outro, ao macho, ao verdadeiro sujeito da existência. 


   Em suma, a existência da mulher é uma reação necessária à existência do homem (sendo esse, afinal, o impulso de ação, o princípio afirmativo). É preciso ressaltar, também, que somente em relação a um senso moral decaído a idéia de ceder, se doar, se sacrificar e pensar primeiro no outro, é vista como superior à idéia de conquistar, se impor, se afirmar e pensar primeiro em si. A luta pela vida tem provado qual das duas disposições morais é mais relevante (e não a única necessária), de modo que inverter esse sistema de valores em favor do sacrifício, ainda que pareça poética e religiosamente “belo”, “redentor”, “nobre” — e o apelo estético-religioso a essas emoções adocicadas não passa, é claro, de sedução sentimental —, no fim apenas nos aproxima da morte (como um afeminado Jesus Cristo abatido na cruz, que é a própria morte fantasiada de vida, em imagens ambíguas e promessas ilusórias).