quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Nietzsche e os comunistas

   
   Como se sabe, Nietzsche tece uma feroz crítica ao racionalismo acachapante de nossa era, ao passo em que confere um grande valor aos instintos nobres da antigüidade (evidentemente, da forma como ele os entendia), reproduzindo aquele velho tema, até hoje discutido em vários círculos intelectuais, de que a razão seria o aspecto degenerativo da sociedade, em contraste com um tipo de instinto e de paixão revitalizadora da potência humana. Entretanto essa concepção só tem lugar na filosofia de Nietzsche na medida em que, erroneamente, ele (ou os românticos em geral) atribui à razão o caráter preponderante dos tipos fracos, baixos, sórdidos e afeminados.

   Tal confusão, no fundo, tem origem numa associação forçada que ele estabelece entre a razão — que seria o princípio apolíneo das formas bem definidas e proporcionais — e um tipo de lógica meramente calculista e pragmática, que, segundo seu sistema filosófico, por carecer de uma matriz de fogo e de poder de criação dionisíaco, nos conduziria a uma moral decadente, ancorada em justificações teoréticas que deslocam o peso real e imediato da existência para um plano distante, frio, ideal e, afinal de contas, falso. Exemplo desse tipo de moral decaída seria, assim, a dos escravos, espíritos débeis e submissos, que, por uma estratégia defensiva gerada pelo ressentimento aos seus senhores, se organizariam para infectá-los com uma razão mórbida e inibidora da coragem instintiva, no que estaria a oportunidade de virar o jogo, alçando os fracos a uma posição de vantagem; e o que resulta, invariavelmente, na própria decadência da sociedade como um todo.

   Esse argumento nietzscheano, embora fundamentado numa observação bastante compreensível do ponto de vista do sujeito nobre, vigoroso e saudável (com o qual, aliás, o próprio pensador alemão parece se identificar), possui suas razões mais profundas contaminadas por germes esteticistas, talvez oriundos do Sturm und Drang, que acabam por deturpar a verdadeira compreensão do problema.

   Pois, se atentamos ao discurso comunista — que para Nietzsche representa o moderno protótipo da mentalidade de escravo (e nesse ponto com toda razão) —, vemos que, de forma irônica, o mesmo tipo de racionalidade fria e calculista também é denunciado aqui como um atributo próprio dos comerciantes, industriais, donos do capital, enfim, os representantes da classe burguesa, considerada a emanação de todo o poder pós-feudal.

   Mas na verdade essas atribuições da razão como simples vícios modernos se baseiam apenas em um tipo de imagem rasa tanto dos burgueses quanto dos escravos, isso porque, ao considerar a racionalidade o caráter essencial dos dois, tais análises modernistas se mantêm restritas à camada mais aparente de ambos, ao menos dentro de um recorte parcial das situações observadas; no entanto, por trás e por baixo dessa imagem de racionalidade mesquinha e perversa (que afinal é só um tipo deturpado de racionalidade), ou seja, na parte menos visível da análise, se esconde o verdadeiro elemento preponderante desses tipos frios e calculistas, tão condenados por Nietzsche e pelos comunistas: trata-se do próprio instinto passional, cego, selvagem e impetuoso, a que esse mesmo Nietzsche atribui um valor de nobreza e do qual o comunistas pretende retirar uma parte fundamental de sua força. Está aí portanto um dos maiores equívocos filosóficos, e aliás dos mais trágicos em suas conseqüências no desenvolvimento da política e do pensamento modernos. 
   
   Ora, consideremos a idéia do típico sujeito psicopata, cuja imagem mais vívida toma forma plena no personagem Dr Hanniball Lecter, do famoso suspense ‘Silêncio dos Inocentes’. Tal personagem nos remete àquela impressão do indivíduo extremamente racional, que usa sua mente como uma espécie de máquina infalível para engendrar planos maquiavélicos e assim atingir seus objetivos gélidos, suas finalidades sombrias, que em geral envolvem a desgraça de terceiros. Mas vejam como não há nada menos racional, e pelo contrário, mais passional, mais instintivo, de um instinto altamente animalesco, do que estabelecer como meta o ato de canibalismo! Assim, para além daquela imagem do homem frio, silencioso, de expressão cínica, seguro de todos seus mais incríveis dotes intelectuais, o que se vê é precisamente o contrário dessa aparência: o homem-besta, consumido em chamas mentais, em urros assustadores, numa expressão monstruosa, se revolvendo em suas mais complexas e obscuras motivações passionais. Os instintos impulsivos são, dessa forma, a verdadeira tônica de sua vida.

   Nietzsche inverte a ordem de hierarquia entre a determinação racional do espírito (consciência/luz) e os seus impulsos instintivos (inconsciência/escuridão), o qual ele confunde com a nobre virtude dos senhores, sem perceber que esses sempre foram mais voltados à reflexão equilibrada, ao auto-domínio, à força desimpedida de reações inconscientes e entorpecidas da carne — compatíveis mais com o comportamento plebeu —, embora também não descartassem a naturalidade das emoções humanas e do extravasamento sentimental em ocasiões propícias, por exemplo, na arte e nos momentos de celebração. Todavia, a chama de Dionísio está constantemente consumindo a alma dos comunistas, que apóiam sobre o ímpeto revolucionário, levado adiante por uma massa furiosa e desgovernada, a sua maior aposta de vencer os inimigos de classe (a burguesia) e assim instaurar a ditadura do proletariado — o que no entanto não os impede de enxergar esse processo como uma mera dinâmica racionalmente bruta da natureza, como entendido, por exemplo, na dialética materialista de Marx. Porém o fato ainda é que os sujeitos que compõem os movimentos de esquerda são, a despeito desse pretenso racionalismo que exibem em suas teorias, os tipos mais dionisíacos, que idolatram a rebeldia, cultuam as drogas, se acham grandes artistas e vivem afogados num maremoto de emoções pueris — ou seja, os protótipos medíocres de um Dr Lecter, sujeito sensível, bem articulado na forma de justificar suas estranhas intenções, e que ao mesmo tempo age como uma fera sanguinolenta e descontrolada. Pois é a moral auto-flagelante do escravo que está embebida e intoxicada de vinho dionisíaco.

   Contudo, se Nietzsche ainda mantém uma certa fidelidade ao seu esquema — talvez por se tratar de um indivíduo que busca o comprometimento com um pensamento singular, diferindo portanto de um simples membro do rebanho que vai aderindo às tendências oscilatórias e inconstantes do comportamento coletivo —, os comunistas, por outro lado, tendem a alternar inconscientemente entre um desmedido apego às emoções mais histéricas e um exacerbado culto da razão mais estéril: e assim ele adquire aquela expressão do típico psicopata engenhoso, que à luz do dia trabalha em seu elegante gabinete concebendo toda sorte de fórmulas práticas, e nas sombras da noite, tal como o sr. Hyde do dr. Jekyll, reverte todos seus esforços meditativos numa explosão de brutalidade, revelando que seus sofisticados cálculos ocultavam nada mais que um desejo primordial de confrontação, sensualidade e entorpecimento.

   Pois é dessa maneira que se comporta o indivíduo moderno, sempre tão obcecado pelas necessidades materiais e pela incessante busca de prazeres terrenos, indivíduo esse que, assim, tem a razão absoluta como norte só enquanto ela serve aos desígnios de sua paixão desenfreadamente selvagem. E por isso toda a linguagem do burguês liberal-progressista ou do comunista revolucionário, embora seja carregada de uma impenetrável terminologia utilitarista que parece apontar para uma abordagem completamente racional do universo, no fundo encobre, com sua tediosa afetação de pragmatismo, apenas um sentido degenerado da vida, pois que desprovido de espiritualidade e de ligação com o transcendente.

   E deste modo, encarando o mundo somente a partir das necessidades biológicas, primitivas e materiais, tal tipo acaba por se reduzir a uma imagem grotesca que fatalmente irá refletir o caráter inferior de um animal, o qual nada faz além de seguir seus instintos carnais, sejam esses os de copular, chafurdar, se esbaldar no sangue de suas presas e expelir urina em troncos de árvore — ou os de expandir os mercados, maximizar os lucros financeiros, lutar pelos interesses de sua classe e atender às necessidades “reais” de uma sociedade burocratizada —; enfim, um animal que, contudo, nunca é capaz de se virar para o céu da alma e ver que a existência possui um propósito maior, divino e glorioso, cuja compreensão é imprescindível inclusive à própria continuidade da vida, aqui e além.

domingo, 27 de outubro de 2013

Homem e Mulher



   Se a figura da mulher é identificada simbolicamente com a Terra — Mãe-Terra, Mãe-Natureza, Gaia e deusas da fertilidade em geral —, tendo assim seu domínio sobre o Mundo Inferior da Matéria (que se relaciona etimologicamente com as palavras ‘materia’, ‘madeira ‘mater’, ‘mother’, ‘madre’, ‘matrix’), o homem, seu complemento essencial, só pode ser então, por analogia, o Céu (‘celestial’, ‘cœlestium’ ‘cælestis’, ‘cælum’, que numa raiz indo-européia mais antiga se refere ao sentido de brilho e claridade); e portanto ele reina sobre o Mundo Superior do Espírito (‘spiritus’, ‘spirare’, ‘espirar’, trazendo esta idéia da alma como o sopro divino que confere vida à matéria moldada como simples plataforma corporal para a consciência), ou ainda sobre o Mundo Superior da Mente (‘mentis’, ‘mens’, ‘men’, enfim, a alma, a inteligência).

   Contudo a vida, compreendida de maneira mais ampla e integrada, está expressa simultaneamente em ambos os elementos, razão pela qual a consciência — a máxima manifestação da realidade — só existe numa síntese entre os planos objetivo (matéria) e subjetivo (espírito). Numa via contrária de análise, podemos entender a morte justamente como a separação destas duas instâncias, a física e a metafísica; e assim o mundo material (o princípio feminino) acaba por cobrar aquilo que lhe pertence, ou seja, o corpo, que desce para as entranhas da terra onde esse terá seu fim decompondo-se num árduo processo temporal; ao passo que o mundo espiritual (o princípio masculino) reclama apenas aquilo que é digno de sua grandeza, isto é, a alma, que, após a morte do indivíduo virtuoso, é dito que sobe aos céus para descansar em paz na eternidade.

   Entretanto a alma, considerada em si mesma, nada mais é do que uma abstração da consciência incorpórea, incapaz de existir senão num mundo ideal, governado pelas formas perfeitamente regulares e pelas leis da eterna harmonia. Já o corpo, por si só, é o objeto inanimado, a matéria bruta, sem vida, submetida unicamente às leis entrópicas da pura inércia física. Portanto o espírito e o corpo indicam a morte somente quando separados um do outro. E com isso temos, de um lado, a imagem daquele estranho espectro plasmático vagando na imensidão de uma esfera onírica (o típico sonho platônico, herdado pelos gnósticos), e por outro, a imagem de um corpo inerte e frio, denunciando toda a impiedosa rudeza deste mundo. Afinal, as duas imagens se referem ao lado sombrio da existência, sendo por isso geralmente utilizadas como temas básicos de contos de terror — uma porque remete a fantasmas, vultos e efeitos paranormais, a outra porque horroriza com a nudez da carne exposta, podre e dilacerada.

   Mas pensando agora no poder da criação, vemos que a mulher é responsável por parir os filhos do homem. Desse modo, há inclusive uma tendência, sobretudo em meios feministas, de se considerar a mulher como o princípio gerador da vida. Trata-se, evidentemente, de uma visão encurtada do cosmo, em plena sintonia, aliás, com todo tipo de visão fisicalista e materialista que aparta do universo sua dimensão metafísica, no qual assim a matéria seria responsável por sua própria geração espontânea: o ‘Big Bang’ é encarado, dentro dessa limitada perspectiva, como uma espécie de parto cósmico que não exigiria nenhum ato primário de fecundação, isto é, nenhuma ordem divina para lhe dar o impulso criativo primordial. No entanto esse primeiro impulso é justamente a força que vem do infinito (o Céu), no sentido de um plano superior, de maior elevação da consciência: o próprio Espírito.

   Assim também se dá a relação entre o homem e a mulher: essa não pode gerar a vida por conta própria. Ela necessita de todos os atributos superiores do homem; pois esse é quem geralmente fica incumbido da tarefa de conquistar sua parceira, e que assim, a princípio, deve impor sua força, sua vontade e sua inteligência para que o fim da geração seja consumado; e até mesmo na própria cópula, quem fornece maior energia é o homem, possuidor do instrumento ativo. O homem é, dessa forma, a semente primordial (organicamente incorporada no próprio sêmen), o sujeito (consciência) da ação, o fundamento/firmamento da vida, enfim, o ponto de partida da existência humana, o que se relaciona com o Espírito, o Deus Criador, o Céu de Luz, que é o ponto de partida da existência universal. Nesse sentido, a mulher é a finalidade da vida, o objeto da ação (seu próprio aparelho reprodutor em forma de alvo nos revela essa sua disposição à passividade), o objetivo da existência humana, tudo isso relacionado à Matéria, à Terra, à Deusa Fértil.

   Pois entendemos que a mulher oferece a condição material em que se pode desenvolver a vida, e por isso o óvulo (oval como o próprio globo terrestre), que de início não passa de um mero conglomerado biomolecular ocioso, é o que, ao longo da gestação, vai tomando a forma do ser vivo. Mas isso apenas a partir do recebimento da semente vital, o conteúdo, que é a luz, o impulso enérgico, a inteligência, a alma, o espírito etc., que deve despertar o corpo (matéria) para a vida.

   A própria vida na Terra só foi possível graças à luz do Sol (mais uma vez, o Céu luminoso, que lança seus raios solares como os semens ejetados em direção ao óvulo). Em suma, o princípio da existência se dá sempre por este mecanismo de emanação e recepção: o princípio masculino e o feminino, respectivamente. Por isso o homem é, em relação à mulher, essencialmente ativo, dado às asperezas, ao frio e ao desafio, enquanto ela é passiva, sentindo tanta necessidade de conforto, calor e proteção.

   Em outros níveis simbólicos, relacionados com essa mesma situação discutida, notamos que o homem está representado pelo elemento Fogo (ou Ar), que aquece e ilumina como o Sol contemplado nas alturas do céu diurno, que é quente como o corpo livre e em alta atividade, que queima como todo processo energético, e que, enfim, traz o calor tão almejado pelas mulheres. Enquanto isso, a mulher tem como símbolo o elemento Terra (ou Água), que é frio e amoldável como o barro úmido, propício para o trabalho de modelagem, e que também é escuro, enigmático e perigoso como toda floresta, selva ou oceano em que o homem busca se lançar a fim de atender às suas ambições de desbravamento e conquista pessoal — pois ele sente menos sede de guardar ou de usufruir a riqueza produzida do que de criar e explorar o novo, assim tendo como verdadeiro prêmio a consciência de seu enorme poder de engendramento.


   Por fim, constatamos que o homem foi feito para a mulher e a mulher, para o homem, pois o caráter dos dois se complementa, as disposições de um encontram-se direcionadas às do outro, e os desejos de ambos são mutuamente satisfeitos, formando assim um uno coeso de existência, que é a síntese dos dois princípios opostos — da mesma forma como a realidade total do universo só é possível na relação entre matéria e espírito.