Se a figura da mulher é identificada simbolicamente com a Terra — Mãe-Terra, Mãe-Natureza, Gaia e deusas da fertilidade em geral —, tendo assim seu domínio sobre o Mundo Inferior da Matéria (que se relaciona etimologicamente com as palavras ‘materia’, ‘madeira’ ‘mater’, ‘mother’, ‘madre’, ‘matrix’), o homem, seu complemento essencial, só pode ser então, por analogia, o Céu (‘celestial’, ‘cœlestium’ ‘cælestis’, ‘cælum’, que numa raiz indo-européia mais antiga se refere ao sentido de brilho e claridade); e portanto ele reina sobre o Mundo Superior do Espírito (‘spiritus’, ‘spirare’, ‘espirar’, trazendo esta idéia da alma como o sopro divino que confere vida à matéria moldada como simples plataforma corporal para a consciência), ou ainda sobre o Mundo Superior da Mente (‘mentis’, ‘mens’, ‘men’, enfim, a alma, a inteligência).
Contudo a vida, compreendida de maneira mais ampla e integrada, está expressa simultaneamente em ambos os elementos, razão pela qual a consciência — a máxima manifestação da realidade — só existe numa síntese entre os planos objetivo (matéria) e subjetivo (espírito). Numa via contrária de análise, podemos entender a morte justamente como a separação destas duas instâncias, a física e a metafísica; e assim o mundo material (o princípio feminino) acaba por cobrar aquilo que lhe pertence, ou seja, o corpo, que desce para as entranhas da terra onde esse terá seu fim decompondo-se num árduo processo temporal; ao passo que o mundo espiritual (o princípio masculino) reclama apenas aquilo que é digno de sua grandeza, isto é, a alma, que, após a morte do indivíduo virtuoso, é dito que sobe aos céus para descansar em paz na eternidade.
Entretanto a alma, considerada em si mesma, nada mais é do que uma abstração da consciência incorpórea, incapaz de existir senão num mundo ideal, governado pelas formas perfeitamente regulares e pelas leis da eterna harmonia. Já o corpo, por si só, é o objeto inanimado, a matéria bruta, sem vida, submetida unicamente às leis entrópicas da pura inércia física. Portanto o espírito e o corpo indicam a morte somente quando separados um do outro. E com isso temos, de um lado, a imagem daquele estranho espectro plasmático vagando na imensidão de uma esfera onírica (o típico sonho platônico, herdado pelos gnósticos), e por outro, a imagem de um corpo inerte e frio, denunciando toda a impiedosa rudeza deste mundo. Afinal, as duas imagens se referem ao lado sombrio da existência, sendo por isso geralmente utilizadas como temas básicos de contos de terror — uma porque remete a fantasmas, vultos e efeitos paranormais, a outra porque horroriza com a nudez da carne exposta, podre e dilacerada.
Mas pensando agora no poder da criação, vemos que a mulher é responsável por parir os filhos do homem. Desse modo, há inclusive uma tendência, sobretudo em meios feministas, de se considerar a mulher como o princípio gerador da vida. Trata-se, evidentemente, de uma visão encurtada do cosmo, em plena sintonia, aliás, com todo tipo de visão fisicalista e materialista que aparta do universo sua dimensão metafísica, no qual assim a matéria seria responsável por sua própria geração espontânea: o ‘Big Bang’ é encarado, dentro dessa limitada perspectiva, como uma espécie de parto cósmico que não exigiria nenhum ato primário de fecundação, isto é, nenhuma ordem divina para lhe dar o impulso criativo primordial. No entanto esse primeiro impulso é justamente a força que vem do infinito (o Céu), no sentido de um plano superior, de maior elevação da consciência: o próprio Espírito.
Assim também se dá a relação entre o homem e a mulher: essa não pode gerar a vida por conta própria. Ela necessita de todos os atributos superiores do homem; pois esse é quem geralmente fica incumbido da tarefa de conquistar sua parceira, e que assim, a princípio, deve impor sua força, sua vontade e sua inteligência para que o fim da geração seja consumado; e até mesmo na própria cópula, quem fornece maior energia é o homem, possuidor do instrumento ativo. O homem é, dessa forma, a semente primordial (organicamente incorporada no próprio sêmen), o sujeito (consciência) da ação, o fundamento/firmamento da vida, enfim, o ponto de partida da existência humana, o que se relaciona com o Espírito, o Deus Criador, o Céu de Luz, que é o ponto de partida da existência universal. Nesse sentido, a mulher é a finalidade da vida, o objeto da ação (seu próprio aparelho reprodutor em forma de alvo nos revela essa sua disposição à passividade), o objetivo da existência humana, tudo isso relacionado à Matéria, à Terra, à Deusa Fértil.
Pois entendemos que a mulher oferece a condição material em que se pode desenvolver a vida, e por isso o óvulo (oval como o próprio globo terrestre), que de início não passa de um mero conglomerado biomolecular ocioso, é o que, ao longo da gestação, vai tomando a forma do ser vivo. Mas isso apenas a partir do recebimento da semente vital, o conteúdo, que é a luz, o impulso enérgico, a inteligência, a alma, o espírito etc., que deve despertar o corpo (matéria) para a vida.
A própria vida na Terra só foi possível graças à luz do Sol (mais uma vez, o Céu luminoso, que lança seus raios solares como os semens ejetados em direção ao óvulo). Em suma, o princípio da existência se dá sempre por este mecanismo de emanação e recepção: o princípio masculino e o feminino, respectivamente. Por isso o homem é, em relação à mulher, essencialmente ativo, dado às asperezas, ao frio e ao desafio, enquanto ela é passiva, sentindo tanta necessidade de conforto, calor e proteção.
Em outros níveis simbólicos, relacionados com essa mesma situação discutida, notamos que o homem está representado pelo elemento Fogo (ou Ar), que aquece e ilumina como o Sol contemplado nas alturas do céu diurno, que é quente como o corpo livre e em alta atividade, que queima como todo processo energético, e que, enfim, traz o calor tão almejado pelas mulheres. Enquanto isso, a mulher tem como símbolo o elemento Terra (ou Água), que é frio e amoldável como o barro úmido, propício para o trabalho de modelagem, e que também é escuro, enigmático e perigoso como toda floresta, selva ou oceano em que o homem busca se lançar a fim de atender às suas ambições de desbravamento e conquista pessoal — pois ele sente menos sede de guardar ou de usufruir a riqueza produzida do que de criar e explorar o novo, assim tendo como verdadeiro prêmio a consciência de seu enorme poder de engendramento.
Por fim, constatamos que o homem foi feito para a mulher e a mulher, para o homem, pois o caráter dos dois se complementa, as disposições de um encontram-se direcionadas às do outro, e os desejos de ambos são mutuamente satisfeitos, formando assim um uno coeso de existência, que é a síntese dos dois princípios opostos — da mesma forma como a realidade total do universo só é possível na relação entre matéria e espírito.
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