sábado, 1 de novembro de 2014

Meritocracia e Maniqueísmo — Parte I







As classes e as raças fracas demais para conduzir as novas condições de vida devem deixar de existir.
— Karl Marx    



   Os sujeitos de esquerda, em geral, mostram-se ferrenhos críticos do chamado “regime meritocrático”, isto é, do sistema de hierarquia social em que cada indivíduo e segmento da sociedade recebe seu quinhão de acordo com seu próprio mérito produtivo. Porém, bastando um pingo de razão e franqueza (coisas de gosto amargo para alguns), vemos como é simplesmente absurdo querer ir contra a “meritocracia” e, por conseguinte, a estrutura social hierárquica, tanto quanto é um mero disparate ser contrário a toda e qualquer forma de “maniqueísmo” (aqui refiro-me, claro, não à doutrina gnóstica de Maniqueu, mas à idéia geral de dualidade, de oposição entre bom e ruim, superior e inferior, noção que obviamente deve perpassar as relações políticas e sociais do homem).

   De fato, qualquer indivíduo minimamente sensato, coerente e racional, que tenha procurado alguma vez testar os limites lógicos destes dois conceitos — a “meritocracia” e o “maniqueísmo” —, mesmo sem ter ido muito longe nos seus desdobramentos metafísicos, constata logo que toda esta questão jamais poderia ser posta em termos de se querer ou não uma “meritocracia”, ou de haver ou não algum “maniqueísmo” subjacente às estruturas da realidade — mas, sim, na idéia de QUAL “meritocracia” e QUAL “maniqueísmo” devem, afinal, nos reger. Contudo vejamos, antes, alguns pontos curiosos sobre esse problema, por exemplo a forma como o próprio esquerdista se comporta em relação a isso tudo.

   Ora, em quaisquer dessas típicas teorias de esquerda utilizadas e papagaiadas por aí — sendo as de cunho marxista as mais comuns —, verificamos sempre o mesmo tipo de maniqueísmo barato que divide o mundo em esquemas duais e fatalistas de ‘revolucionários’ contra ‘reacionários’, ou ‘proletários’ contra ‘burgueses’, ou ‘oprimidos’ contra ‘exploradores’, ou ‘pobres’ contra ‘ricos’, ou ‘críticos’ contra ‘alienados’, ou ‘eurasianistas’ contra ‘atlantistas’, ou ‘telurocráticos’ contra ‘talassocráticos’ etc. (e óbvio que confrontações dessa natureza pouco diferem das mais grosseiras disputas religiosas, onde se tem sempre a dualidade ‘fiéis’ contra ‘infiéis’); ou seja, todas elas constituindo formas brutas de maniqueísmo, que estabelecem um lado contra o outro, e onde um é melhor e merece prevalecer, enquanto o outro é pior e deve perecer.

   Assim, pois, seguindo o próprio raciocínio desse pessoal, vemos como é patente que, até para que haja qualquer base de sustentação teórica a esse constante estado de embate entre diferentes classes (econômicas, ideológicas, raciais, étnicas, civilizacionais, espirituais...), se faz absolutamente necessário algum tipo de parâmetro meritocrático, que assim serviria de eixo central a toda essa dinâmica de enfrentamentos grupais — pois então toda a história da sociedade humana só teria até hoje avançado pelos MÉRITOS de determinados grupos, de determinadas classes (sócio-econômicas, ideológicas, raciais etc.), que a cada nova etapa histórica superam suas antagonistas. 

   Isso tudo é coisa óbvia, ululante, e somente um indivíduo incapaz de perceber que 1+1=2 poderia ser contrário aos fatores maniqueísta e meritocrático que desde sempre têm movido as sociedades humanas (para não falarmos do mundo natural como um todo), e que também sempre estiveram devidamente considerados em todo estudo sério de ciência política. 

   Aliás, por ser mesmo um aspecto tão elementar de qualquer teoria explicativa da dinâmica social, é que os próprios Marx e Engels, ou seja, os dois principais teóricos da vertente de pensamento revolucionário, jamais negaram seu valor empírico fundamental. Muito pelo contrário, o sustentaram com uma verbosidade inflamada de causar horror e náusea até nos mais selvagens dos capitalistas “liberais-fascistóides” (na expressão que gostam de alardear os comunistas). Isso porque, apesar da bílis irada e ressentida que estimulava cada um de seus neurônios, esses ainda pareciam funcionar de acordo com um certo senso de realismo, isto é, com alguma observância aos fatos objetivos da realidade geopolítica e econômica; e, por isso, esses dois indivíduos tão cultuados pela esquerda, não sendo nada ingênuos como seus primos utópicos, sabiam muito bem que desprezar este aspecto básico da vida — a meritocracia como um elemento inelutável da realidade — só serviria para enfraquecer sua própria causa, a qual consistia justamente em impulsionar a vitória de uma classe sobre outra, pelos supostos méritos sócio-econômicos que ela teria (por exemplo, a vitória de uma classe trabalhadora-braçal, que supostamente estaria sustentando uma elite mesquinha e folgada que só faz rabiscar porcarias numa folha de papel). 

   É desse modo, afinal, que Marx e Engels, dois grandes rabiscadores de porcarias em folhas de papel, buscavam explicar que a classe burguesa, sendo num determinado momento histórico preponderante economicamente à classe feudal, pôde então prevalecer sobre a inimiga reacionária. Teria sido, portanto, os MÉRITOS de uma classe sobre a outra que garantiram a preponderância do tipo burguês, com sua industriosa força empreendedora, em cima dos senhores de terra do medievo, acomodados em seus castelinhos góticos — exatamente como prescreve a noção meritocrática: ora, o melhor mereceu prevalecer na sociedade, na economia, na política, na história; enquanto o pior mereceu ser rebaixado.

   Desse modo, também, é que os mesmos teóricos comunistas pretendiam que a classe proletária venceria a burguesa, impondo através do terror revolucionário um novo regime político (a famigerada ditadura do proletariado): novamente, pelo alegado mérito de ter em si a superioridade da força de produção econômica; sem esquecer, é claro, de seus líderes e elites burocráticas comandando tudo, pelo também alegado mérito de ter em si a superioridade do engajamento político.

   Assim, é muito natural que Marx e Engels estivessem sempre fazendo declarações de ódio nesse sentido acachapantemente maniqueísta — como as que se seguem nesta pequena compilação que aqui separo de trechos de algumas obras e correspondências:





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“Sob a sociedade está em curso uma revolução silenciosa que nada faz notar acerca da existência humana por ela posta abaixo, assim como um terremoto faz em relação às casas por ele destruídas. As classes e as raças fracas demais para conduzir as novas condições de vida devem deixar de existir. Porém pode haver algo mais pueril, de mais curta visão, do que o ponto de vista desses economistas que acreditam piamente que este lamentável estado de transição nada significa além de adaptação da sociedade às propensões aquisitivas dos capitalistas, tanto senhores de terra quanto senhores do dinheiro?”

KARL MARX (Emigração Forçada, 1853)





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“Pelo mesmo direito que a França tomou Flandres, Lorena e Alsácia, e cedo ou tarde tomará a Bélgica — pelo mesmo direito a Alemanha toma para si [o território então dinamarquês de] Schleswig; esse é o direito da civilização contra a barbárie, do progresso contra a estabilidade. Ainda que os acordos estivessem a favor da Dinamarca, o que é bastante suspeito, este direito carrega um peso maior que todos os acordos, pois é o direito da evolução histórica.” 

F. ENGELS (O Armistício Dano-Prussiano, Neue Rheinische Zeitung, 9 de Setembro de 1848)





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Todos os povos reacionários estão destinados a perecer ante a tempestade mundial revolucionária. (...) Esses fragmentos residuais de povos sempre se tornam barreiras de fanatismo reacionário e conseguem se manter até sua completa extirpação ou perda de suas características nacionais, assim como toda sua existência é por si, em geral, um protesto contra a grande revolução histórica. (...) Uma guerra geral esmagará esses eslavos e limpará todas essas nações conservadoras mesquinhas. A próxima guerra mundial resultará no desaparecimento da face da terra não apenas das classes reacionárias e dinásticas, mas de todos os povos reacionários. E isso também é uma passo adiante.”      

F. ENGELS (A Luta Húngara, Neue Rheinische Zeitung, 13 de Janeiro de 1849)






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“Um fantasma está rondando a Europa — o fantasma do Comunismo. (...) A história de todas as sociedades que até hoje existiram é a história da luta de classes. (...) Esboçando em linhas gerais as fases do desenvolvimento proletário, descrevemos a história da guerra civil, mais ou menos oculta, que alastra-se na sociedade atual, até o ponto em que essa guerra explode numa revolução aberta e o proletariado estabelece sua dominação pela derrubada violenta da burguesia. (...) O proletariado utilizará sua supremacia política para arrancar pouco a pouco todo o capital da burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado (...) Isto naturalmente só poderá realizar-se, em princípio, por uma violação despótica do direito de propriedade e das relações de produção burguesa. (...) Os proletários nada têm a perder; sua missão é destruir todas as garantias e segurança da propriedade privada até aqui existentes. (...) Em resumo, acusai-nos de querer abolir vossa propriedade. De fato, é isso que queremos.”

KARL MARX & FRIEDRICH ENGELS (Manifesto Comunista, 1848)





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“Em relação aos lemas sentimentais de irmandade que as nações mais reacionárias da Europa têm nos oferecido, nós respondemos que o ódio à Rússia foi e ainda é a paixão primordial da revolução entre os alemães; e que, tendo sido ainda acrescentado o ódio revolucionário aos checos e croatas, somente pelo uso mais determinado do terror contra o povo eslavo nós poderemos, junto com os poloneses e húngaros, salvaguardar a revolução. (...) Então haverá uma luta, uma inexorável luta de vida ou morte contra esses eslavos que traem a revolução; uma batalha de aniquilamento e de terror brutalnão ao interesse da Alemanha, mas ao interesse da revolução!

FRIEDRICH ENGELS (Pan-Eslavismo Democrático, Neue Rheinische, 14 de Fevereiro de 1849)





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“A luta do proletariado contra a burguesia, embora não seja na essência uma luta nacional, reveste-se contudo dessa forma nos primeiros tempos. É natural que o proletariado de cada país deva, antes de tudo, liqüidar sua própria burguesia.

KARL MARX & FRIEDRICH ENGELS (Manifesto Comunista, 1848)




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“Os franceses precisam de uma surra. Se os prussianos vencerem, a centralização do poder do Estado será útil para a centralização da classe trabalhadora alemã. A predominância alemã também transferiria o centro de gravidade do movimento trabalhador na Europa Ocidental da França para a Alemanha, e só bastaria comparar o movimento nos dois países de 1866 até o presente momento para verificar que a classe trabalhadora alemã é superior à francesa tanto em sentido teórico quanto organizacional. Sua predominância sobre os franceses em nível mundial também significaria a predominância de nossa teoria sobre a teoria de Phoudhon.”

KARL MARX (Carta a Friedrich Engels em Manchester, 20 de Julho de 1870)




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“Esse é o traço redentor da guerra: ela impõe um teste à nação. Como a exposição à atmosfera reduz todas as múmias à dissolução instantânea, assim a guerra faz o julgamento supremo sobre os sistemas sociais que passaram de seu prazo de validade.

KARL MARX (Uma Outra Revelação Britânica, 24 de Setembro de 1885)




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“Jacoby se desqualificou para essa tarefa. Esse homem é sábio demais. Seus argumentos são tão triviais e de uma vulgaridade democrática! Ele denigre o uso da força como algo repreensível em si, mesmo quando todos nós sabemos que no fim nada pode ser alcançado sem o uso da força.

FRIEDRICH ENGELS (Carta a Wilhelm Blos, 21 de Fevereiro de 1874)





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“Esses cães democratas e ralé liberal verão que nós fomos os únicos que não se entorpeceram pelo medonho período de paz.

KARL MARX (Carta a Friedrich Engels, 25 de Fevereiro de 1859)





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“Esses cavalheiros já viram uma revolução? Uma revolução é certamente a coisa mais autoritária que existe; é um ato pelo qual uma parte da população impõe sua vontade sobre a outra por meio de rifles, baionetas e canhões, que são todos meios altamente autoritários. E o partido vitorioso deve manter suas regras por meio do terror que suas armas inspiram nos reacionários. Teria a Comuna de Paris durado mais que um dia se ela não tivesse usado a autoridade do povo armado contra os burgueses? Não podemos, pelo contrário, culpá-la por ter feito só pouco uso dessa autoridade? Logo, das duas uma: ou esses anti-autoritaristas não sabem do que estão falando, situação em que só estão confundindo tudo. Ou eles sabem, e nesse caso estão traindo a causa do proletariado. Em ambos os casos eles servem apenas aos reacionários.

FRIEDRICH ENGELS (Controvérsia com os anarquistas, 1873)





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“No momento em que a crise chegar, a população inglesa terá se cansado de ser saqueada e deixada para morrer de fome pelos capitalistas (...) Se, nesse período, a burguesia inglesa não tiver tomado juízo — e ao que tudo indica isso certamente não ocorrerá — teremos uma revolução com a qual nenhuma outra pode se comparar (...) a vingança popular alcançará uma intensidade maior do que aquela que animou os trabalhadores franceses de 1793 [Revolução Francesa]. A guerra do pobre contra o rico será a mais sangrenta jamais vista. Mesmo a conciliação de parte da burguesia com o proletariado, mesmo uma reforma geral da burguesia, de nada adiantará.”

FRIEDRICH ENGELS (A Condição da Classe Trabalhadora na Inglaterra, 1845)





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“Acima de tudo, os trabalhadores devem fazer o possível para se opor às tentativas burguesas de pacificação e forçar os democratas a levar adiante seus lemas terroristas. Eles devem se esforçar para garantir que a excitação revolucionária não seja extinguida imediatamente após a vitória. Ao contrário, ela deve ser mantida o máximo que puderem. Muito longe de se opor aos chamados excessos — por exemplo a vingança popular contra indivíduos odiados ou contra edifícios públicos associados a memórias odiosas —, o partido dos trabalhadores deve não apenas tolerar essas ações mas dar a elas a direção. (...) Ao primeiro instante da vitória, a suspeita dos trabalhadores deve ser direcionada não mais contra o partido reacionário abatido, mas contra seus primeiros aliados, contra o partido [democrata] que pretende agora explorar a vitória comum para seus próprios fins (...) Para que sejam capazes de se opor com força e de modo ameaçador a esse partido [democrata], cuja traição aos trabalhadores terá início no primeiro momento após a vitória, os proletários devem ser armados e organizados. Todo o proletariado deve ser armado de uma vez com mosquetes, rifles, canhão e munição. (...) os trabalhadores devem se organizar entre si em uma guarda proletária independente, com seus próprios líderes e generais, para se colocar às ordens não do Estado mas das autoridades revolucionárias estabelecidas pelos próprios trabalhadores.”

KARL MARX & FRIEDRICH ENGELS (Discuso à Liga Comunista, Março de 1850)





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“O lumpemproletariado [lumpen: ‘trapo, farrapo, ou canalha, desprezível’ + ‘proletariado’], essa escuma de membros degenerados de todas as classes, que tem seu quartel nas grandes cidades, é o pior tipo de aliado. Essa ralé é totalmente vendida e repulsiva. Se os trabalhadores franceses, no curso da Revolução, inscreveram ‘Mort aux voleurs!’ (Morte aos ladrões!), e mesmo derrubaram muitos deles, o fizeram não por apego à propriedade, mas por considerarem, corretamente, que isso era necessário para manter esses bandos de fora. O líder dos trabalhadores que usa esses patifes como guardas ou confia o apoio neles se prova por esse único ato um traidor do movimento.”

F. ENGELS (A Guerra dos Camponeses na Alemanha, Prefácio do Autor à Segunda Edição, 1870)




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Sob o pretexto de fundar uma sociedade benevolente, o lumpemproletariado foi organizado em sessões secretas de Paris, cada uma liderada por agentes bonapartistas, com um general bonapartista no comando. Junto com libertinos arruinados, de meios duvidosos de subsistência e duvidosas procedências, junto com descendentes aventureiros e degenerados da burguesia, estavam vagabundos, dispensados de tropa, ex-presidiários, fugitivos, trapaceiros, saltimbancos, sem-tetos, batedores de carteira, charlatães, jogadores, cagoetas, cafetões, donos de bordéis, bagageiros, escrevinhadores, tocadores de realejo, trapeiros, amoladores, caldeireiros, mendigos — em uma palavra, toda essa massa informe, difusa e errante que os franceses chamam de boêmia.”

KARL MARX (O Décimo Oitavo Brumário de Luís Bonaparte, 1852)






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   Fica claro, portanto, que um tipo cruel de meritocracia e um tipo radical de maniqueísmo estão, sim, presentes com muita força nas teorias socialistas, e na mentalidade esquerdista e revolucionária como um todo — de modo que, voltando-se à questão do início, vemos que uma coisa só deve realmente interessar aqui: entender QUAIS são, afinal, os tipos de meritocracia e de maniqueísmo (ou, na verdade, dualismo) que regem uma sociedade sadia, e cuja observância mais realista, coerente, sincera, garantem um modelo de maior justiça e estabilidade social, sem que haja, assim, um incessante fluxo de guerra e ódio entre as diferentes classes e nações. Esse será, pois, o assunto a ser tratado nos próximos capítulos deste ensaio.






sexta-feira, 31 de outubro de 2014

A Morte Canhestra






  O lado esquerdo, a via sinistra, a maldição deste mundo, é tudo que leva nosso olhar para o instável curso dos eventos temporais. É tudo que transfere o sentido da existência para o futuro incerto, na vã esperança do porvir que nunca virá. É tudo que transmuda a essência perene da Eternidade, da vida espiritualizada em comunhão com os céus, na corrente transitória do Tempo. É tudo que nos faz mergulhar na liquidez dos fortuitos desejos subterrâneos. À esquerda tomamos contato com esta substância efêmera do universo e, adiante, ao longo deste rio do vir-a-ser — que nunca é! —, em um fluxo contínuo, ora monótono, ora tormentoso, rumo ao outro extremo do Princípio Criador, nos defrontamos finalmente com esta fúnebre criatura: a Morte. E ela, a paradoxal criatura, sedenta de uma sede que não seca, clama em desespero pela alma do homem. 

  Eis, então, o demônio a sorrir com sua mandíbula esquelética, convidando o homem para seu reino de fantasias carnavalescas. Eis o ceifador a exibir o fio brilhante de sua navalha, em cujos reflexos os mais maravilhosos sonhos reluzem por frações de segundo, como miragens instantâneas e sedutoras a caminharem para o vale negro da perdição, atrás o homem enfeitiçado a persegui-las como um rato hipnotizado. Mas sem o véu dos sonhos coloridos que o cega nesse instante de euforia, ainda esse homem pode vê-la, a Morte, ali, no distante fundo tenebroso, no vórtice de poeira estelar rodopiante, apontando com seu filete de dedo para os ponteiros velozes do grande relógio mecânico fixado acima de sua nuca, na altura das galáxias. Mostrando, também, como descem incessantemente os últimos glóbulos vermelhos de sua ampulheta de sangue, na vertiginosa queda dos corpos frágeis, ela indica o caminho do inevitável fim, do último fôlego pulmonar, da última pulsação vascular, da última contração cardíaca. E, assim, balançando seus ossos em movimentos frenéticos, no chacoalhar ensurdecedor da dança macabra, ela ri e dança... e continua rindo, e continua dançando...

  Contemplando a imagem onírica e translúcida desta fantasmagórica masmorra onde habita a Morte, que também é a fantasia de fantásticos suspiros fabricada por este fantasma, o homem não encontra mais a substância de vivacidade do mundo em que outrora viveram seus antepassados divinos, o mundo real de nítida claridade dos deuses; tampouco na superfície carnuda deste diabólico monstro opaco que é a matéria sólida encontra ele o conteúdo etéreo de verdade espiritual profunda que, igualmente, ele necessita para se sentir mais uma vez vivo. Esse homem, miserável e acovardado, se sente como que esmagado pelo peso das estrelas longínquas, encurralado em um vão infinito de espaços ameaçadores, de forças satânicas a espreita-lo por cada muralha que o cerca, a sugar sua alma para o limbo cósmico, em direção ao mesmo nada para onde seguem os estilhaços atômicos do grande disparo primordial. Mas isso porque ele se recusa a buscar no lugar certo a fonte da vida. Em vez disso, prefere procurar onde a fonte deságua morta, como sangue frio a servir cálices de crânio, como lama incandescente a queimar as paredes desta caverna infernal, hermeticamente guardada pelos seus místicos vigias, magos e bruxas de todas as eras. 

  Então, na ânsia de esgotar seu urgente apetite, esse homem, impaciente e tolo, lança-se em direção ao alimento viscoso transbordante dos fundos poços de gordura repugnante, dos largos caldeirões ensopados de restos mortais suínos. Aí, ele se engasga com o guloso vômito que da sua própria garganta reflui, junto com as asas de moscas, pernas de sapos e rabos de lagartos de seu intestino putrefato. Depois, buscando vingança contra aquela alta estrutura, forte e sadia, que ele já não mais alcança, esse homúnculo passa a sondar as escuras grutas de seu pesadelo, onde escoam os prazeres destilados da dor, onde em seu ouvido ensangüentado ecoam os urros de loucura e sofrimento, que são seus próprios. 

  Entorpecido pelo veneno morno do pecado capital, aproxima ele da língua metálica e pontiaguda desta caveira coberta de pó, deparando-se com o vulto repentino da serpente mortífera; ela, fulminante, lhe pica a maçã do rosto. A cena, em nostálgica variação, se repete. Agora, seduzido pelo pio agudo e melancólico da dissonante melodia que ouve abafada no fundo do manto preto, fita ele os olhos ausentes do esqueleto sombrio que veste a túnica, nas fendas escuras desta ossada lúgubre, enxergando ali nada mais que as sombras dos corvos; essas, impiedosas, lhe bicam a face contraída.

  No ombro esquerdo desta caquética forma mortuária agarra-se uma coruja caolha de penas tão secas quanto folhas de outono desprendidas de ásperos caules desidratados. Em silêncio, a pequena ave de rapina, com seu pescoço versátil, assiste ao horroroso espetáculo pelos mais variados ângulos, através de seu único olho arregalado na noite gélida. Mas trata-se de um olho inconstante e pouco perceptível, como uma fagulha de vela quase toda consumida em um disforme ninho de cera negra; um olho imprevisível como a inquieta labareda de tocha cintilante que o temeroso homem carrega enquanto atravessa seu destino aleatório.

  A expressão desse pássaro, como se esculpida numa cabeça oca, é estática como a de uma gárgula draconiana, e penetra não um objeto real a sua frente, mas um mundo delirante de imaginação febril que queima atrás de sua esfera ocular cinzenta. O brilho trêmulo de seu pequeno olho, essa natural lente lacrimejante, refletindo o vazio de todo seu espectro melancólico, ilumina, como a lua cheia, um perigoso rastro de lobos. Por ali se guia o homem, direto para a espessa floresta de espinhos densos que o aguarda faminta. Enquanto isso, nas profundezas do labirinto umbroso, a coruja marrom permanece imóvel como uma lasca do tronco seco, sem ramos ou raízes, em cuja cavidade ela se esconde. E desse ponto escuro ela observa, aguardando o fim do infeliz, numa espera indiferente e cínica.


  A armadilha surte efeito. O homem alcança o claustro cerne da selva esquecida, onde a mais longa noite enfim abate seu corpo esmorecido e subjuga sua mente exausta. Então, sobre a desfalecida vítima, a Morte cerra seu maxilar duro, mastigando o cadáver semi-morto do moribundo que não mais resiste. E, assim, rasgando indefinidamente a carne rubra e fedorenta deste decrépito mortal, num frenesim de mastigar alucinante, ela mastiga e cospe, e ri, e mastiga de novo... e continua rindo, e continua mastigando...





Happy Halloween...

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Marx revirando-se no túmulo...






   Após ouvir o que uma típica representante da política socialista tem a dizer sobre sua tão generosa e poética ideologia, e de seu coitado Marx, vejamos o que o próprio tem a dizer.


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“Um espírito podre está se fazendo sentir em nosso Partido na Alemanha, não tanto entre as massas mas entre os líderes (alta classe e ‘trabalhadores’).

O compromisso com os lassalleanos [seguidores de Lassalle, os social-democratas] também tem nos levado ao compromisso com outros elementos desfalcados; em Berlim (p. ex., Most), com Dühring e seus ‘admiradores’, mas também com todo um bando de estudantes imaturos e doutores super-sensatos que desejam dar uma orientação mais ‘elevada e idealista’ ao socialismo, isto é, substituindo os fundamentos materialistas (que exigem um sério estudo objetivo de qualquer um que tente aplicá-los) pela mitologia moderna com suas deusas da Justiça, Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Dr. Hochberg, que publica o Zukunft (Futuro), é um representante dessa tendência e já ‘se comprou’ ao partido — com as mais ‘nobres’ intenções, suponho... contudo eu não dou a mínima para ‘intenções’.

Os próprios trabalhadores, quando deixam de trabalhar e se tornam escritores profissionais como o Sr. Most e sua laia, incitam sempre algum malefício ‘teórico’ e estão sempre prontos a se ligarem aos imbecis da alegada casta ‘culta’. Especialmente o socialismo utópico, que por décadas e com muito trabalho e esforço nós temos limpado da cabeça dos trabalhadores alemães — e de cuja libertação os tem feito, na teoria e na prática, superiores aos franceses e ingleses —; o socialismo utópico, jogando com imagens fantasiosas da futura estrutura social, está agora tumultuando de uma forma muito mais infrutífera, comparada não só com os grandes utópicos franceses e ingleses, mas com... Weitling. Naturalmente que o utopismo, que no momento anterior ao socialismo materialista-crítico continha seus germes, surgindo agora depois desse só pode ser algo tolo — tolo, obsoleto e basicamente reacionário.

 — KARL MARX (Carta a Friedrich Adolph Sorge, 19 de Outubro de 1877)



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“É que quando o rapazinho [‘o corcundinha animado’ Wedde] estava em Londres pela primeira vez eu usei a expressão ‘mitologia moderna’ para descrever as deusas da ‘Justiça, Liberdade, Igualdade etc.’ que agora estão novamente em voga; isso gerou nele uma profunda impressão, uma vez que ele próprio havia feito muito à serviço dessas altas entidades.”

 — KARL MARX (Carta a Friedrich Engels, 1 de Agosto de 1877)



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Cada governo provisório que se forma após uma revolução requer uma ditadura, e por sinal uma ditadura enérgica. Desde o início nós culpamos Camphausen por não ter agido de uma maneira ditatorial, por não ter imediatamente esmagado e removido os restos da antiga instituição.  (...) Nunca se deve ter hesitação em empregar medidas de bem-estar social (medidas públicas salutares) e medidas ditatoriais contra as forças democráticas.

 — KARL MARX (Artigo de Neue Rheinische, 13 de Setembro de 1848)



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Afinal, o marxismo teria sido deturpado por regimes ditatoriais... ou não seria ele já deturpado em si mesmo?



terça-feira, 22 de julho de 2014

Nietzsche: a justiça do ativo versus a vingança do reativo




   Se há uma coisa que devemos retirar do pensamento de Nietzsche é sua noção de moralidade e justiça. Pois ela não é platônica, idealizada, utópica, ao ponto de edificar — apenas em abstração — um mundo de “perfeição moral” sobre este nosso mundo verdadeiro, da realidade... o qual, de fato, não é tão bonitinho e inofensivo como muitos gostariam.
   Por outro lado, essa noção nietzscheana de moralidade e justiça também não pende — como muitos crêem, por ignorância de seus escritos — para o outro extremo, de um mundo absolutamente maligno, despótico, de um incessante fluxo de ódio, anarquia e destruição, como realmente se poderia supor a partir de um ponto de vista ressentido (esse que, aliás, será demonstrado como o grande erro na consideração do problema).
   Para quem só está disposto a aceitar como justa a vida em alguma espécie de paraíso, a existência real nunca será mesmo satisfatória, e aliás também nunca será nada além de um inferno, ou de um purgatório. Por isso, àqueles que concebem o caráter perigoso e dinâmico da vida como algo de totalmente inaceitável, ou moralmente injustificável, só restam duas expectativas: aguardar, como um santo ou como um pecador resignado e arrependidinho, pelo suposto paraíso vindouro... ou buscar prevalecer, como um demônio ensandecido, no suposto inferno desta vida.
   E qual não é a surpresa quando constatamos que ambas as posições são, em geral, tomadas igualmente pelo mesmo tipo, isto é, o sujeito ressentido, que não suporta esta existência, que a enxerga como um inferno cósmico? Pois essa é a psicologia tanto do comunista quanto do cristão, e por isso mesmo o esquema metafísico e ontológico de ambos se constrói a partir das mesmas reações rancorosas, dos mesmos afetos ressentidos — como em breve ficará claro na leitura dos aforismos de Nietzsche.
   O outro extremo de só poder aceitar um mundo que seja absolutamente inofensivo e pacífico, isto é, só conseguir conceber um mundo que seja absolutamente maligno e despótico, consiste afinal no resultado esperável de uma mente fragmentada, que oscila entre dois pólos opostos, e que por fim gera uma conduta ambígua, inconscientemente oscilatória, como um pêndulo esquizofrênico que se move entre o amor e o ódio extremos. 
   Esse é o caso de vermos tantos que se dizem de esquerda ostentando um pacifismo demagógico de retardado (ou de cínico), que pretende desarmar os cidadãos e destitui-los de seu direito natural de castigar ou eliminar um bandido, como se a resposta para todos os males do mundo só pudesse ser o carinho e o amor distribuídos de maneira gratuita — ao passo que esses mesmos esquerdistas, contaminados que estão por uma cosmovisão reativa e rancorosa, também só conseguem conceber este mundo como injusto, odioso, enganador, falso, cruel, e no qual portanto somente o ódio, a malícia, a injustiça, o engodo, a falsidade, serviriam de atributos positivos para efetivamente se alcançar qualquer objetivo: até mesmo a máxima justiça, a paz absoluta!
   Assim que temos tipos como Lenin, Stalin, Roosevelt, Truman, Fidel Castro, Che Guevara, Mao Tse-Tung, Pol Pot, Kim Jong-il, todos líderes de esquerda que mantinham sob seu discurso político a promessa de um “bem maior e supremo”... pelo que então puderam justificar, rasteiramente, um “mal maior e supremo”!










   O cristão, se analisarmos a fundo sua crença, também espera por uma espécie de utopia, só que em moldes metafísicos: o “paraíso” onde todos viveriam em eterna paz e harmonia, bem providos por um poder divino centralizado, monopolizado — afinal monoteísta —, sustentados sobre uma divina “ordem jurídica concebida como geral e soberana” (nas palavras de Nietzsche, ao criticar o sistema pretendido pelos comunistas), que não mais permitiria a luta, a disputa, a competição, a evolução, enfim, a dinâmica natural da vida. 
   Isso tudo é o que esperam, que almejam, que sonham os cristãos, na mesma verve utópica dos comunistas e esquerdistas; e da mesmíssima forma, impulsionados pelos mesmos afetos reativos de rancor, igualmente esperam, almejam, sonham com uma revolução capaz de trazer isso tudo, de uma vez por todas, às custas das mais altas, largas e dolorosas labaredas expiatórias.
   No reservatório inconsciente do cristianismo, essa grande fome por carnificina, por genocídio, por expiação em massa, em suma, essa grandiosa revolução redentora capaz de trazer o “admirável plano novo” ganha o pomposo nome de ‘Juízo Final’ — a concretização teórica de todos aqueles impulsos de ódio reprimidos —, situação essa que justificaria, ontológica ou metafisicamente, a promessa de seu belo paraíso... pois que esse só se encontra no além (tanto faz se temporal ou celestial), através de pura abstração da realidade a que temos acesso, o mundo natural dos fenômenos reais, tal como sempre existiu e sempre pôde ser observado em suas leis básicas.





   O ‘Juízo Final’, o ‘Apocalipse’ (‘Revelação’), o ‘Inferno Cristão’, constitui, desse modo, a projeção reativa, ressentida, rancorosa, de um cenário de terror em que haveria uma brusca ruptura da ordem real (em suas leis básicas, dinâmicas, evolutivas...), com uma suprema ordem totalmente estática erigida a partir de um evento totalmente catastrófico, tenebroso, caótico (‘ordo ab chao’)... o que então poderia justificar, em teoria, a crença no eterno paraíso — e não em uma simples continuidade da vida neste plano de existência, mantendo-se, contudo, os mesmos princípios e leis primordiais já observáveis (como a dinâmica e a evolução natural da vida).










   Não por acaso essa visão “revelada” ao profeta soa tão similar às visões reais que já  pudemos verificar, em doses homeopáticas, no genocídio de alemães, japoneses, chineses, armênios e palestinos, e na incineração compulsiva de hereges em fogueiras da Santa Inquisição (que houve na Idade Média, porém de forma ainda mais brutal na Idade Moderna, como na Inquisição Espanhola dos séculos XVI ao XIX), e em tantos outros episódios semelhantes que se estendem, em casos particulares, por toda a história, e que compartilham todos do mesmo pathos revolucionário nascido nos delírios de um Stalin, um Robespierre, um Torquemada.





   E não por acaso, também, essa revelação apocalíptica do cristianismo é incrivelmente similar às visões “reveladas” ao judeu Marx, quando esse, por exemplo, afirmava que o destino dos opositores dos objetivos comunistas era o de “perecerem no holocausto revolucionário.” O destino dos infiéis, que se apõem aos objetivos do cristão, também seria, no sistema de crença desse, o de perecerem no holocausto revolucionário, o qual aqui já se identifica com o inferno, o mar de fogo em que são queimadas hordas inteiras de adversários da fé cristã, após o tal “juízo final”.





   Pois bem, seguem então os aguardados aforismos de Nietzsche, tirados de sua obra ‘Genealogia da Moral’:


***

— Alguém deseja descer o olhar sobre o segredo de como são fabricados os ideais na terra? Quem tem coragem para tanto? ...Muito bem! Aqui abre-se a vista a esta oficina negra! ...Mas espere ainda um instante, senhor curioso e destemido: seus olhos devem primeiro acostumar-se a esta luz fraca e trêmula... Certo! Basta! Fale agora! Que sucede ali embaixo? Diga o que vê, homem da curiosidade temerária — agora sou eu quem escuta. 
— Eu nada vejo, mas por isso ouço muito bem. É um cochichar e sussurrar cauteloso, soturno, rumorejante, vindo de todos os cantos e fissuras. Parece-me que mentem; uma suavidade doce e pegajosa escorre de cada som. A fraqueza é mentirosamente transmudada em mérito, não há dúvida. É como você disse. 
— Prossiga! 
— E a impotência que não consegue acertar contas é transmudada em ‘bondade’; a timidez covarde, em ‘humildade’; a submissão a quem se odeia, em ‘obediência’ (na verdade há alguém que, dizem, ordena esta submissão — chamam-no Deus). O que há de inofensivo no fraco, a própria covardia na qual é pródigo, seu aguardar na soleira da porta, sua inelutável espera pela morte, recebe aqui o bom nome de ‘paciência’, também denominado como  ‘virtude’; o não-poder-revidar chama-se não-querer-revidar, talvez até mesmo perdão (“pois não sabem o que fazem; só nós sabemos o que fazem!” [Lucas 23.34]). Falam também do “amor aos inimigos” — e como suam ao falar disso! 
— Prossiga!
— São miseráveis, não há dúvida, esses falsificadores e cochichadores dos becos escondidos, ainda que fiquem de cócoras e apertados entre si para se aquecerem. Mas eles me dizem que sua miséria é uma eleição e distinção por parte de Deus; talvez essa miséria seja apenas uma preparação, uma prova, um treino, talvez ainda mais... algo que um dia será recompensado e pago com juros altíssimos, em ouro... não!, em felicidade! A isto chamam “bem-aventurança”. 
— Prossiga!
— Agora me informam que não apenas são melhores que os poderosos, os senhores da terra cujo escarro têm de lamber (não por medo, de modo algum!, mas porque Deus lhes ordena a respeitarem essa autoridade [Romanos 13.1]), mas também “estão melhores”, ou de qualquer modo estarão algum dia. Mas basta, basta! Não agüento mais. Que ar ruim! Que ar ruim exala desta oficina onde se fabricam os ideais! Minha impressão é de que está fedendo a mentira!
— Não! Um momento! Você ainda não falou do golpe de mestre desses nigromantes, que transformam todo negror em brancura, em leite, em inocência; não notou a consumada perfeição de seu refinamento, o seu mais ousado, sutil, ardiloso e mendaz truque de artista? Preste atenção! Esses animais freqüentadores de taverna cheios de ódio e vingança — no que eles transformam precisamente o ódio e a vingança? Você ouviu suas palavras? Você suspeitaria, se pudesse ouvir apenas suas palavras, que esses que agora estão a sua volta não passam de homens de ressentimento?...
— Compreendo; abrirei de novo meus ouvidos (ah!, e taparei meu nariz!). Somente agora escuto o que tanto dizem: “Nós, pessoas boas — nós somos os justos” — O que eles aspiram não chamam de retaliação, mas de “triunfo da justiça”; o que eles odeiam não é seu inimigo, oh não!, mas a “injustiça”, a “falta de Deus”; o que eles acreditam e esperam não é a perspectiva de vingança, a embriaguez da doce vingança (“mais doce que mel”, como apontou Homero [Ilíada XVIII]), mas a vitória deste Deus ‘justo’ sobre os ímpios; o que lhes resta para amar na Terra não são os seus irmãos no ódio, mas seus “irmãos no amor” [Primeiro Tessalonicenses 1.3], como dizem todos eles, os bons e justos da Terra.
— E como chamam aquilo que lhes serve de consolo por todo o sofrimento do mundo? Como chamam a fantasmagoria da sua futura e antecipada bem-aventurança?
— Quê? Estou ouvindo bem? A isto chamam de “Juízo Final”, o advento de seu reino, do “Reino de Deus”... Mas por enquanto vivem “na fé”, “no amor”, “na esperança” [Primeira Epístola aos Coríntios 13.13] .
— Basta! Basta!

(Genealogia da Moral; Primeira Dissertação; Aforismo 14)

***

Fé em quê? Amor a quê? Esperança de quê? Esses fracos, é certo que também eles desejam ser os fortes algum dia, não há dúvida; também o seu “reino” deverá vir: chamam-no simplesmente o “Reino de Deus”, como vimos. São mesmo tão humildes em tudo! Para alcançar isto é preciso viver uma vida longa, que ultrapasse a própria vida. É preciso a “vida eterna” para ser eternamente recompensado no “Reino de Deus” por essa existência terrena “no amor, na fé, na esperança”. 
Recompensado pelo quê? E como?... Parece-me que Dante enganou-se grosseiramente quando, com espantosa ingenuidade, colocou sobre os portões de seu inferno a inscrição “também a mim criou o eterno amor” [Divina Comédia, Inferno III 5-6] — em todo caso, seria mais justificado se na entrada do paraíso cristão e sua “beatitude eterna” estivesse inscrito: “também a mim criou o eterno ódio” ...supondo que uma verdade pudesse figurar sobre a porta que leva a uma mentira!
Pois o que é a beatitude desse paraíso? ...Talvez já pudéssemos adivinhar; mas é melhor o expressivo testemunho de alguém cuja autoridade na matéria não se subestima: Tomás de Aquino, o grande mestre e santo. Diz ele, com a docilidade de um cordeiro: “Beati in regno coelesti videbunt poenas damnatorum, ut beatitudo illis magis complaceat” [“Os abençoados no reino celeste verão as penas dos danados, para que sua beatitude lhes dê maior satisfação” — Suma Teológica, Suplemento à Terceira Parte, questão XCVII, artigo i, ‘conclusio’]. Ou, querendo-se ouvir o mesmo conteúdo em tom mais forte, por exemplo da boca de um triunfante Pai da Igreja [Tertuliano] que desaconselha seus cristãos as volúpias cruéis dos espetáculos públicos... mas os desaconselha a isto por quê? Diz ele (De Spectaculis, cap. 30 ss.):
“A fé nos oferece muito mais, uma coisa muito mais forte; graças à redenção, dispomos de alegrias inteiramente diversas; em lugar dos atletas, temos nossos mártires; se queremos sangue, ora, temos o sangue de Cristo... mas o que é isto diante do que nos espera no dia de seu retorno, de seu grande triunfo!”
E ele continua, o visionário extasiado: 
“Mas há ainda outro espetáculo... aquele último e perpétuo dia do juízo final, aquele dia não esperado e até escarnecido pelas nações, quando toda a antigüidade e tantas gerações serão consumidas num só fogo. Quão vasto será então este espetáculo! Como o contemplarei admirado! Como rirei! Como me alegrarei! Como exultarei, vendo tantos e tão grandes reis, de quem se dizia estarem já no céu, gemendo nas mais profundas trevas, junto ao próprio Júpiter e às testemunhas de sua apoteose. Do mesmo modo os governadores das províncias, perseguidores do santo nome, derretendo-se em chamas mais cruéis que aquelas com que eles insolentemente maltrataram os cristãos! E também aqueles sábios filósofos, que diante de seus discípulos tornam-se rubros ao se consumirem no fogo, e, juntamente com eles, os que foram persuadidos de que nada importa a Deus, e de que as almas não existem ou não retornarão aos mesmos corpos de antes! Os poetas também, a tremerem, não diante do tribunal de Radamanto ou de Minos, mas daquele do Cristo inesperado! Então melhor se escutará esses autores, isto é, melhor serão ouvidos seus clamores (melhor o clamor, maiores os berros) em sua própria tragédia; então se reconhecerá os mais expressivos atores de pantomima, ainda mais facilmente por causa das chamas em que estarão se debatendo; então se verá aquele que representou como o cocheiro olímpico, todo rubro na verdadeira carruagem flamejante; então se contemplarão os atletas, não no ginásio, mas na fogueira; a não ser que eu nem queira ver esses espetáculos, pois antes prefira dirigir um olhar insaciável de gozo àqueles que maltrataram o Senhor: ‘Eis ele’, direi, ‘o filho do carpinteiro e da prostituta (como o chamaram os judeus), o destruidor do Sabbath [Sábado], o Samaritano, o que diziam ter o diabo. Eis aquele que comprastes de Judas, aquele que foi castigado com açoites e bofetadas, que foi humilhado com escarros, a quem foi dado de beber fel e vinagre. Eis o corpo daquele que, segundo vocês, os próprios discípulos roubaram às escondidas de sua tumba, para que se mentisse que havia retornado dos mortos, ou que o agricultor removeu para que suas verduras não fossem estragadas pelo grande número de peregrinos’. Tais visões, tais alegrias, que governador, ou cônsul, ou sacerdote, te poderia oferecê-las de sua própria generosidade? E no entanto, de certo modo, já as possuímos mediante a nossa fé, presente no espírito concebido. De resto, como são aquelas coisas que ‘nem o olho viu, nem o ouvido ouviu, nem chegaram ao coração do homem?’ (1 Cor. 2,9), creio que são mais agradáveis que o circo, que ambos os teatros [cômico e trágico], e que todos os estádios.”
Per fidem: assim está escrito.

(Genealogia da Moral; Primeira Dissertação; Aforismo 15)

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Agora uma palavra crítica sobre as recentes tentativas de se buscar a origem da justiça num terreno bem estranho: o do ressentimento. Antes direi no ouvido dos psicólogos [os interessados em compreender a mente humana], supondo que algum dia queiram estudar de perto o ressentimento: hoje esta erva daninha floresce de modo mais espetacular entre os anarquistas e anti-semitas, aliás onde sempre floresceu, na sombra, como a violeta, embora com outro aroma. E assim como daquilo que é igual sempre brotarão seus iguais, não é de se surpreender que precisamente desses círculos se vejam surgir tentativas, como já houve várias, de sacralizar a vingança sob o nome de justiça — como se no fundo a justiça fosse apenas uma evolução do sentimento de estar ferido — e depois promover, com a vingança, todos os afetos reativos. Quanto a esse ponto, eu não teria tanto o que objetar: a consideração do problema biológico em seu conjunto (em relação ao qual o valor dos afetos não tem sido suficientemente levado em conta) me parece até mesmo um mérito
O que gostaria de sublinhar é que, em tal circunstância, essa nova nuance de justificação científica (em favor do ódio, do despeito, da inveja, da suspeita, do rancor, da vingança) nasce do próprio espírito de ressentimento. Pois essa “justificação científica” se detém muito cedo num determinado aspecto [o reativo], dando lugar a desvios de parcialidade e inimizade mortal, quando, me parece, um outro grupo de afetos é que possui um valor biológico bem mais elevado que o dos afetos reativos, e que, portanto, mereceria ser cientificamente validado, além de muito estimado: os afetos propriamente ativos, como a vontade de dominar, o desejo de possuir, e outros assim. Apenas isto a dizer contra essas tendências (E. Dühring, ‘O Valor da Vida: Um Curso de Filosofia’; de fato, em todas suas obras).
Mas quanto à afirmação específica de Dühring, de que a fonte da justiça encontra-se no terreno do sentimento reativo, é preciso, em prol da verdade, contrapor-lhe bruscamente com a afirmação inversa: o último terreno conquistado pelo espírito da justiça é o do sentimento reativo! Quando acontece realmente de observarmos o homem ser justo até mesmo com quem lhe prejudica (e não apenas frio, comedido, distante, indiferente: pois ser justo implica sempre em uma postura ativa), quando a elevada, clara, branda e também profunda objetividade do olho justo, do olho que julga, não se turva sequer ante o assalto da injúria pessoal, do escárnio e da calúnia, bem, isto é sinal de perfeição e suprema maestria, — algo, inclusive, que prudentemente não se deve esperar e em que não se deve facilmente crer. É certo que, no geral, mesmo para as pessoas mais honradas, basta uma pequena dose de agressão, malícia, insinuação, para lhes fazer subir o sangue aos olhos e assim perder de vista a imparcialidade. 
Porém, o homem ativo, agressivo, que até mesmo se excede, está sempre muito mais próximo da justiça do que o homem reativo, omisso, covarde; pois ele não está necessariamente preso a uma avaliação parcial e falsa do problema, como sempre acontece com o homem reativo. Assim, efetivamente, o homem agressivo, como o mais forte, nobre, corajoso, em todas as épocas conservou o olhar mais claro, a consciência mais livre: inversamente, já se sabe quem carrega consigo a invenção da “má consciência” — o homem de ressentimento! 
Afinal, consultemos a história: a qual esfera, até o momento, tem pertencido em seu conjunto a administração do direito, e também a própria exigência de direito? Seria porventura à esfera dos homens reativos? De modo algum; mas sim à dos ativos, fortes, espontâneos, agressivos. Em termos históricos, o direito na terra representa justamente — seja dito para desgosto do já mencionado agitador [E. Dühring] (o qual faz ele mesmo esta confissão: “a doutrina da vingança atravessa todos os meus trabalhos e esforços como um fio vermelho de justiça”) — a luta travada contra os sentimentos reativos, a guerra que lhes movem os poderes ativos e agressivos, que utilizam parte de sua força para conter os desregramentos do pathos reativo, mantendo-os sob controle e dentro dos limites, e assim impor um acordo. 
Em toda parte onde se exerce e se mantém a justiça, vemos um poder mais forte que busca meios de, entre os mais fracos a ele subordinados (grupos ou indivíduos), dar fim ao insensato furor do ressentimento, seja retirando das mãos da vingança o objeto do ressentimento, seja substituindo a vingança pela luta contra os inimigos da paz e da ordem, seja engendrando, aconselhando ou mesmo forçando compromissos.
Mas o que a máxima autoridade faz e impõe, de modo determinante, contra a vigência dos sentimentos de reação e rancor — o que sempre faz, tão logo se sente forte o bastante —, é a instituição de um sistema de leis, a declaração imperativa sobre o que a seus olhos é permitido e justo, ou proibido e injusto: após a instituição da lei, ao tratar abusos e atos arbitrários de indivíduos e grupos como crime, como violação da lei, como revolta contra a autoridade mesma, ela desvia a atenção de seus subordinados do dano imediato causado por tais ofensas, e assim consegue afinal o oposto do que deseja a vingança, a qual enxerga e faz valer somente o ponto de vista do prejudicado —: daí em diante o olho é treinado para uma avaliação sempre mais impessoal do ato, e passa a considerar até mesmo o olhar do prejudicado (mas este por último, como já se observou). — Segue-se que “justo” e “injusto” passam a existir apenas a partir da instituição da lei (e não, como quer Dühring, a partir do ato ofensivo). Falar de justo e injusto em si é absurdo; em si, ofender, violentar, explorar, destruir não podem naturalmente ser algo “injusto”, na medida em que, na sua essência, isto é, em suas funções básicas, a vida atua ofendendo, violentando, explorando, destruindo, não podendo em absoluto ser concebida sem esse caráter. 
É preciso inclusive admitir algo ainda mais difícil: que, do mais alto ponto de vista biológico, os estados jurídicos não podem senão ser estados de exceção, enquanto restrições parciais da verdadeira vontade de vida, que busca o poder e a cujos fins gerais tais estados se subordinam como meios particulares: isto é, como meios de criar unidades de poder superiores. Uma ordem jurídica concebida como geral e soberana, não como meio para o uso na luta entre complexos de poder, mas como meio contra toda luta — mais ou menos segundo o clichê comunista de Dühring, de que toda vontade deve considerar toda outra vontade como igual —, seria um princípio hostil à vida, uma fator de dissolução e destruição do homem, um atentado ao futuro do homem, um sinal de cansaço, um caminho sinuoso para o nada. 

(Genealogia da Moral; Segunda Dissertação; Aforismo 11)


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