“As classes e as raças fracas demais para conduzir as novas condições de vida devem deixar de existir.”
— Karl Marx
Os sujeitos de esquerda, em geral, mostram-se ferrenhos críticos do chamado “regime meritocrático”, isto é, do sistema de hierarquia social em que cada indivíduo e segmento da sociedade recebe seu quinhão de acordo com seu próprio mérito produtivo. Porém, bastando um pingo de razão e franqueza (coisas de gosto amargo para alguns), vemos como é simplesmente absurdo querer ir contra a “meritocracia” e, por conseguinte, a estrutura social hierárquica, tanto quanto é um mero disparate ser contrário a toda e qualquer forma de “maniqueísmo” (aqui refiro-me, claro, não à doutrina gnóstica de Maniqueu, mas à idéia geral de dualidade, de oposição entre bom e ruim, superior e inferior, noção que obviamente deve perpassar as relações políticas e sociais do homem).
De fato, qualquer indivíduo minimamente sensato, coerente e racional, que tenha procurado alguma vez testar os limites lógicos destes dois conceitos — a “meritocracia” e o “maniqueísmo” —, mesmo sem ter ido muito longe nos seus desdobramentos metafísicos, constata logo que toda esta questão jamais poderia ser posta em termos de se querer ou não uma “meritocracia”, ou de haver ou não algum “maniqueísmo” subjacente às estruturas da realidade — mas, sim, na idéia de QUAL “meritocracia” e QUAL “maniqueísmo” devem, afinal, nos reger. Contudo vejamos, antes, alguns pontos curiosos sobre esse problema, por exemplo a forma como o próprio esquerdista se comporta em relação a isso tudo.
Ora, em quaisquer dessas típicas teorias de esquerda utilizadas e papagaiadas por aí — sendo as de cunho marxista as mais comuns —, verificamos sempre o mesmo tipo de maniqueísmo barato que divide o mundo em esquemas duais e fatalistas de ‘revolucionários’ contra ‘reacionários’, ou ‘proletários’ contra ‘burgueses’, ou ‘oprimidos’ contra ‘exploradores’, ou ‘pobres’ contra ‘ricos’, ou ‘críticos’ contra ‘alienados’, ou ‘eurasianistas’ contra ‘atlantistas’, ou ‘telurocráticos’ contra ‘talassocráticos’ etc. (e óbvio que confrontações dessa natureza pouco diferem das mais grosseiras disputas religiosas, onde se tem sempre a dualidade ‘fiéis’ contra ‘infiéis’); ou seja, todas elas constituindo formas brutas de maniqueísmo, que estabelecem um lado contra o outro, e onde um é melhor e merece prevalecer, enquanto o outro é pior e deve perecer.
Assim, pois, seguindo o próprio raciocínio desse pessoal, vemos como é patente que, até para que haja qualquer base de sustentação teórica a esse constante estado de embate entre diferentes classes (econômicas, ideológicas, raciais, étnicas, civilizacionais, espirituais...), se faz absolutamente necessário algum tipo de parâmetro meritocrático, que assim serviria de eixo central a toda essa dinâmica de enfrentamentos grupais — pois então toda a história da sociedade humana só teria até hoje avançado pelos MÉRITOS de determinados grupos, de determinadas classes (sócio-econômicas, ideológicas, raciais etc.), que a cada nova etapa histórica superam suas antagonistas.
Isso tudo é coisa óbvia, ululante, e somente um indivíduo incapaz de perceber que 1+1=2 poderia ser contrário aos fatores maniqueísta e meritocrático que desde sempre têm movido as sociedades humanas (para não falarmos do mundo natural como um todo), e que também sempre estiveram devidamente considerados em todo estudo sério de ciência política.
Aliás, por ser mesmo um aspecto tão elementar de qualquer teoria explicativa da dinâmica social, é que os próprios Marx e Engels, ou seja, os dois principais teóricos da vertente de pensamento revolucionário, jamais negaram seu valor empírico fundamental. Muito pelo contrário, o sustentaram com uma verbosidade inflamada de causar horror e náusea até nos mais selvagens dos capitalistas “liberais-fascistóides” (na expressão que gostam de alardear os comunistas). Isso porque, apesar da bílis irada e ressentida que estimulava cada um de seus neurônios, esses ainda pareciam funcionar de acordo com um certo senso de realismo, isto é, com alguma observância aos fatos objetivos da realidade geopolítica e econômica; e, por isso, esses dois indivíduos tão cultuados pela esquerda, não sendo nada ingênuos como seus primos utópicos, sabiam muito bem que desprezar este aspecto básico da vida — a meritocracia como um elemento inelutável da realidade — só serviria para enfraquecer sua própria causa, a qual consistia justamente em impulsionar a vitória de uma classe sobre outra, pelos supostos méritos sócio-econômicos que ela teria (por exemplo, a vitória de uma classe trabalhadora-braçal, que supostamente estaria sustentando uma elite mesquinha e folgada que só faz rabiscar porcarias numa folha de papel).
É desse modo, afinal, que Marx e Engels, dois grandes rabiscadores de porcarias em folhas de papel, buscavam explicar que a classe burguesa, sendo num determinado momento histórico preponderante economicamente à classe feudal, pôde então prevalecer sobre a inimiga reacionária. Teria sido, portanto, os MÉRITOS de uma classe sobre a outra que garantiram a preponderância do tipo burguês, com sua industriosa força empreendedora, em cima dos senhores de terra do medievo, acomodados em seus castelinhos góticos — exatamente como prescreve a noção meritocrática: ora, o melhor mereceu prevalecer na sociedade, na economia, na política, na história; enquanto o pior mereceu ser rebaixado.
Desse modo, também, é que os mesmos teóricos comunistas pretendiam que a classe proletária venceria a burguesa, impondo através do terror revolucionário um novo regime político (a famigerada ditadura do proletariado): novamente, pelo alegado mérito de ter em si a superioridade da força de produção econômica; sem esquecer, é claro, de seus líderes e elites burocráticas comandando tudo, pelo também alegado mérito de ter em si a superioridade do engajamento político.
Assim, é muito natural que Marx e Engels estivessem sempre fazendo declarações de ódio nesse sentido acachapantemente maniqueísta — como as que se seguem nesta pequena compilação que aqui separo de trechos de algumas obras e correspondências:
***
“Sob a sociedade está em curso uma revolução silenciosa que nada faz notar acerca da existência humana por ela posta abaixo, assim como um terremoto faz em relação às casas por ele destruídas. As classes e as raças fracas demais para conduzir as novas condições de vida devem deixar de existir. Porém pode haver algo mais pueril, de mais curta visão, do que o ponto de vista desses economistas que acreditam piamente que este lamentável estado de transição nada significa além de adaptação da sociedade às propensões aquisitivas dos capitalistas, tanto senhores de terra quanto senhores do dinheiro?”
KARL MARX (Emigração Forçada, 1853)
*
“Pelo mesmo direito que a França tomou Flandres, Lorena e Alsácia, e cedo ou tarde tomará a Bélgica — pelo mesmo direito a Alemanha toma para si [o território então dinamarquês de] Schleswig; esse é o direito da civilização contra a barbárie, do progresso contra a estabilidade. Ainda que os acordos estivessem a favor da Dinamarca, o que é bastante suspeito, este direito carrega um peso maior que todos os acordos, pois é o direito da evolução histórica.”
F. ENGELS (O Armistício Dano-Prussiano, Neue Rheinische Zeitung, 9 de Setembro de 1848)
*
“Todos os povos reacionários estão destinados a perecer ante a tempestade mundial revolucionária. (...) Esses fragmentos residuais de povos sempre se tornam barreiras de fanatismo reacionário e conseguem se manter até sua completa extirpação ou perda de suas características nacionais, assim como toda sua existência é por si, em geral, um protesto contra a grande revolução histórica. (...) Uma guerra geral esmagará esses eslavos e limpará todas essas nações conservadoras mesquinhas. A próxima guerra mundial resultará no desaparecimento da face da terra não apenas das classes reacionárias e dinásticas, mas de todos os povos reacionários. E isso também é uma passo adiante.”
F. ENGELS (A Luta Húngara, Neue Rheinische Zeitung, 13 de Janeiro de 1849)
*
“Um fantasma está rondando a Europa — o fantasma do Comunismo. (...) A história de todas as sociedades que até hoje existiram é a história da luta de classes. (...) Esboçando em linhas gerais as fases do desenvolvimento proletário, descrevemos a história da guerra civil, mais ou menos oculta, que alastra-se na sociedade atual, até o ponto em que essa guerra explode numa revolução aberta e o proletariado estabelece sua dominação pela derrubada violenta da burguesia. (...) O proletariado utilizará sua supremacia política para arrancar pouco a pouco todo o capital da burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado (...) Isto naturalmente só poderá realizar-se, em princípio, por uma violação despótica do direito de propriedade e das relações de produção burguesa. (...) Os proletários nada têm a perder; sua missão é destruir todas as garantias e segurança da propriedade privada até aqui existentes. (...) Em resumo, acusai-nos de querer abolir vossa propriedade. De fato, é isso que queremos.”
KARL MARX & FRIEDRICH ENGELS (Manifesto Comunista, 1848)
*
“Em relação aos lemas sentimentais de irmandade que as nações mais reacionárias da Europa têm nos oferecido, nós respondemos que o ódio à Rússia foi e ainda é a paixão primordial da revolução entre os alemães; e que, tendo sido ainda acrescentado o ódio revolucionário aos checos e croatas, somente pelo uso mais determinado do terror contra o povo eslavo nós poderemos, junto com os poloneses e húngaros, salvaguardar a revolução. (...) Então haverá uma luta, uma inexorável luta de vida ou morte contra esses eslavos que traem a revolução; uma batalha de aniquilamento e de terror brutal — não ao interesse da Alemanha, mas ao interesse da revolução!”
FRIEDRICH ENGELS (Pan-Eslavismo Democrático, Neue Rheinische, 14 de Fevereiro de 1849)
*
“A luta do proletariado contra a burguesia, embora não seja na essência uma luta nacional, reveste-se contudo dessa forma nos primeiros tempos. É natural que o proletariado de cada país deva, antes de tudo, liqüidar sua própria burguesia.”
KARL MARX & FRIEDRICH ENGELS (Manifesto Comunista, 1848)
*
“Os franceses precisam de uma surra. Se os prussianos vencerem, a centralização do poder do Estado será útil para a centralização da classe trabalhadora alemã. A predominância alemã também transferiria o centro de gravidade do movimento trabalhador na Europa Ocidental da França para a Alemanha, e só bastaria comparar o movimento nos dois países de 1866 até o presente momento para verificar que a classe trabalhadora alemã é superior à francesa tanto em sentido teórico quanto organizacional. Sua predominância sobre os franceses em nível mundial também significaria a predominância de nossa teoria sobre a teoria de Phoudhon.”
KARL MARX (Carta a Friedrich Engels em Manchester, 20 de Julho de 1870)
*
“Esse é o traço redentor da guerra: ela impõe um teste à nação. Como a exposição à atmosfera reduz todas as múmias à dissolução instantânea, assim a guerra faz o julgamento supremo sobre os sistemas sociais que passaram de seu prazo de validade.”
KARL MARX (Uma Outra Revelação Britânica, 24 de Setembro de 1885)
Fonte: http://mecollectedworks.files.wordpress.com/2014/04/marx-engels-collected-works-volume-14_-m-karl-marx1.pdf [página 516]
*
“Jacoby se desqualificou para essa tarefa. Esse homem é sábio demais. Seus argumentos são tão triviais e de uma vulgaridade democrática! Ele denigre o uso da força como algo repreensível em si, mesmo quando todos nós sabemos que no fim nada pode ser alcançado sem o uso da força.”
FRIEDRICH ENGELS (Carta a Wilhelm Blos, 21 de Fevereiro de 1874)
Fonte: http://mecollectedworks.files.wordpress.com/2014/04/marx-engels-collected-works-volume-45_-ka-karl-marx.pdf [página 9]
*
“Esses cães democratas e ralé liberal verão que nós fomos os únicos que não se entorpeceram pelo medonho período de paz.”
KARL MARX (Carta a Friedrich Engels, 25 de Fevereiro de 1859)
Fonte: http://mecollectedworks.files.wordpress.com/2014/04/marx-engels-collected-works-volume-40_-ka-karl-marx.pdf [página 393]
*
“Esses cavalheiros já viram uma revolução? Uma revolução é certamente a coisa mais autoritária que existe; é um ato pelo qual uma parte da população impõe sua vontade sobre a outra por meio de rifles, baionetas e canhões, que são todos meios altamente autoritários. E o partido vitorioso deve manter suas regras por meio do terror que suas armas inspiram nos reacionários. Teria a Comuna de Paris durado mais que um dia se ela não tivesse usado a autoridade do povo armado contra os burgueses? Não podemos, pelo contrário, culpá-la por ter feito só pouco uso dessa autoridade? Logo, das duas uma: ou esses anti-autoritaristas não sabem do que estão falando, situação em que só estão confundindo tudo. Ou eles sabem, e nesse caso estão traindo a causa do proletariado. Em ambos os casos eles servem apenas aos reacionários.”
FRIEDRICH ENGELS (Controvérsia com os anarquistas, 1873)
*
“No momento em que a crise chegar, a população inglesa terá se cansado de ser saqueada e deixada para morrer de fome pelos capitalistas (...) Se, nesse período, a burguesia inglesa não tiver tomado juízo — e ao que tudo indica isso certamente não ocorrerá — teremos uma revolução com a qual nenhuma outra pode se comparar (...) a vingança popular alcançará uma intensidade maior do que aquela que animou os trabalhadores franceses de 1793 [Revolução Francesa]. A guerra do pobre contra o rico será a mais sangrenta jamais vista. Mesmo a conciliação de parte da burguesia com o proletariado, mesmo uma reforma geral da burguesia, de nada adiantará.”
FRIEDRICH ENGELS (A Condição da Classe Trabalhadora na Inglaterra, 1845)
Fonte: https://www.marxists.org/archive/marx/works/1845/condition-working-class/ch13.htm ou http://www.gutenberg.org/files/17306/17306-h/17306-h.htm
*
“Acima de tudo, os trabalhadores devem fazer o possível para se opor às tentativas burguesas de pacificação e forçar os democratas a levar adiante seus lemas terroristas. Eles devem se esforçar para garantir que a excitação revolucionária não seja extinguida imediatamente após a vitória. Ao contrário, ela deve ser mantida o máximo que puderem. Muito longe de se opor aos chamados excessos — por exemplo a vingança popular contra indivíduos odiados ou contra edifícios públicos associados a memórias odiosas —, o partido dos trabalhadores deve não apenas tolerar essas ações mas dar a elas a direção. (...) Ao primeiro instante da vitória, a suspeita dos trabalhadores deve ser direcionada não mais contra o partido reacionário abatido, mas contra seus primeiros aliados, contra o partido [democrata] que pretende agora explorar a vitória comum para seus próprios fins (...) Para que sejam capazes de se opor com força e de modo ameaçador a esse partido [democrata], cuja traição aos trabalhadores terá início no primeiro momento após a vitória, os proletários devem ser armados e organizados. Todo o proletariado deve ser armado de uma vez com mosquetes, rifles, canhão e munição. (...) os trabalhadores devem se organizar entre si em uma guarda proletária independente, com seus próprios líderes e generais, para se colocar às ordens não do Estado mas das autoridades revolucionárias estabelecidas pelos próprios trabalhadores.”
KARL MARX & FRIEDRICH ENGELS (Discuso à Liga Comunista, Março de 1850)
Fonte: https://www.marxists.org/archive/marx/works/1847/communist-league/1850-ad1.htm ou em português: http://www.marxists.org/portugues/marx/1850/03/mensagem-liga.htm
*
“O lumpemproletariado [lumpen: ‘trapo, farrapo, ou canalha, desprezível’ + ‘proletariado’], essa escuma de membros degenerados de todas as classes, que tem seu quartel nas grandes cidades, é o pior tipo de aliado. Essa ralé é totalmente vendida e repulsiva. Se os trabalhadores franceses, no curso da Revolução, inscreveram ‘Mort aux voleurs!’ (Morte aos ladrões!), e mesmo derrubaram muitos deles, o fizeram não por apego à propriedade, mas por considerarem, corretamente, que isso era necessário para manter esses bandos de fora. O líder dos trabalhadores que usa esses patifes como guardas ou confia o apoio neles se prova por esse único ato um traidor do movimento.”
F. ENGELS (A Guerra dos Camponeses na Alemanha, Prefácio do Autor à Segunda Edição, 1870)
*
“Sob o pretexto de fundar uma sociedade benevolente, o lumpemproletariado foi organizado em sessões secretas de Paris, cada uma liderada por agentes bonapartistas, com um general bonapartista no comando. Junto com libertinos arruinados, de meios duvidosos de subsistência e duvidosas procedências, junto com descendentes aventureiros e degenerados da burguesia, estavam vagabundos, dispensados de tropa, ex-presidiários, fugitivos, trapaceiros, saltimbancos, sem-tetos, batedores de carteira, charlatães, jogadores, cagoetas, cafetões, donos de bordéis, bagageiros, escrevinhadores, tocadores de realejo, trapeiros, amoladores, caldeireiros, mendigos — em uma palavra, toda essa massa informe, difusa e errante que os franceses chamam de boêmia.”
KARL MARX (O Décimo Oitavo Brumário de Luís Bonaparte, 1852)
***
Fica claro, portanto, que um tipo cruel de meritocracia e um tipo radical de maniqueísmo estão, sim, presentes com muita força nas teorias socialistas, e na mentalidade esquerdista e revolucionária como um todo — de modo que, voltando-se à questão do início, vemos que uma coisa só deve realmente interessar aqui: entender QUAIS são, afinal, os tipos de meritocracia e de maniqueísmo (ou, na verdade, dualismo) que regem uma sociedade sadia, e cuja observância mais realista, coerente, sincera, garantem um modelo de maior justiça e estabilidade social, sem que haja, assim, um incessante fluxo de guerra e ódio entre as diferentes classes e nações. Esse será, pois, o assunto a ser tratado nos próximos capítulos deste ensaio.