sexta-feira, 31 de outubro de 2014

A Morte Canhestra






  O lado esquerdo, a via sinistra, a maldição deste mundo, é tudo que leva nosso olhar para o instável curso dos eventos temporais. É tudo que transfere o sentido da existência para o futuro incerto, na vã esperança do porvir que nunca virá. É tudo que transmuda a essência perene da Eternidade, da vida espiritualizada em comunhão com os céus, na corrente transitória do Tempo. É tudo que nos faz mergulhar na liquidez dos fortuitos desejos subterrâneos. À esquerda tomamos contato com esta substância efêmera do universo e, adiante, ao longo deste rio do vir-a-ser — que nunca é! —, em um fluxo contínuo, ora monótono, ora tormentoso, rumo ao outro extremo do Princípio Criador, nos defrontamos finalmente com esta fúnebre criatura: a Morte. E ela, a paradoxal criatura, sedenta de uma sede que não seca, clama em desespero pela alma do homem. 

  Eis, então, o demônio a sorrir com sua mandíbula esquelética, convidando o homem para seu reino de fantasias carnavalescas. Eis o ceifador a exibir o fio brilhante de sua navalha, em cujos reflexos os mais maravilhosos sonhos reluzem por frações de segundo, como miragens instantâneas e sedutoras a caminharem para o vale negro da perdição, atrás o homem enfeitiçado a persegui-las como um rato hipnotizado. Mas sem o véu dos sonhos coloridos que o cega nesse instante de euforia, ainda esse homem pode vê-la, a Morte, ali, no distante fundo tenebroso, no vórtice de poeira estelar rodopiante, apontando com seu filete de dedo para os ponteiros velozes do grande relógio mecânico fixado acima de sua nuca, na altura das galáxias. Mostrando, também, como descem incessantemente os últimos glóbulos vermelhos de sua ampulheta de sangue, na vertiginosa queda dos corpos frágeis, ela indica o caminho do inevitável fim, do último fôlego pulmonar, da última pulsação vascular, da última contração cardíaca. E, assim, balançando seus ossos em movimentos frenéticos, no chacoalhar ensurdecedor da dança macabra, ela ri e dança... e continua rindo, e continua dançando...

  Contemplando a imagem onírica e translúcida desta fantasmagórica masmorra onde habita a Morte, que também é a fantasia de fantásticos suspiros fabricada por este fantasma, o homem não encontra mais a substância de vivacidade do mundo em que outrora viveram seus antepassados divinos, o mundo real de nítida claridade dos deuses; tampouco na superfície carnuda deste diabólico monstro opaco que é a matéria sólida encontra ele o conteúdo etéreo de verdade espiritual profunda que, igualmente, ele necessita para se sentir mais uma vez vivo. Esse homem, miserável e acovardado, se sente como que esmagado pelo peso das estrelas longínquas, encurralado em um vão infinito de espaços ameaçadores, de forças satânicas a espreita-lo por cada muralha que o cerca, a sugar sua alma para o limbo cósmico, em direção ao mesmo nada para onde seguem os estilhaços atômicos do grande disparo primordial. Mas isso porque ele se recusa a buscar no lugar certo a fonte da vida. Em vez disso, prefere procurar onde a fonte deságua morta, como sangue frio a servir cálices de crânio, como lama incandescente a queimar as paredes desta caverna infernal, hermeticamente guardada pelos seus místicos vigias, magos e bruxas de todas as eras. 

  Então, na ânsia de esgotar seu urgente apetite, esse homem, impaciente e tolo, lança-se em direção ao alimento viscoso transbordante dos fundos poços de gordura repugnante, dos largos caldeirões ensopados de restos mortais suínos. Aí, ele se engasga com o guloso vômito que da sua própria garganta reflui, junto com as asas de moscas, pernas de sapos e rabos de lagartos de seu intestino putrefato. Depois, buscando vingança contra aquela alta estrutura, forte e sadia, que ele já não mais alcança, esse homúnculo passa a sondar as escuras grutas de seu pesadelo, onde escoam os prazeres destilados da dor, onde em seu ouvido ensangüentado ecoam os urros de loucura e sofrimento, que são seus próprios. 

  Entorpecido pelo veneno morno do pecado capital, aproxima ele da língua metálica e pontiaguda desta caveira coberta de pó, deparando-se com o vulto repentino da serpente mortífera; ela, fulminante, lhe pica a maçã do rosto. A cena, em nostálgica variação, se repete. Agora, seduzido pelo pio agudo e melancólico da dissonante melodia que ouve abafada no fundo do manto preto, fita ele os olhos ausentes do esqueleto sombrio que veste a túnica, nas fendas escuras desta ossada lúgubre, enxergando ali nada mais que as sombras dos corvos; essas, impiedosas, lhe bicam a face contraída.

  No ombro esquerdo desta caquética forma mortuária agarra-se uma coruja caolha de penas tão secas quanto folhas de outono desprendidas de ásperos caules desidratados. Em silêncio, a pequena ave de rapina, com seu pescoço versátil, assiste ao horroroso espetáculo pelos mais variados ângulos, através de seu único olho arregalado na noite gélida. Mas trata-se de um olho inconstante e pouco perceptível, como uma fagulha de vela quase toda consumida em um disforme ninho de cera negra; um olho imprevisível como a inquieta labareda de tocha cintilante que o temeroso homem carrega enquanto atravessa seu destino aleatório.

  A expressão desse pássaro, como se esculpida numa cabeça oca, é estática como a de uma gárgula draconiana, e penetra não um objeto real a sua frente, mas um mundo delirante de imaginação febril que queima atrás de sua esfera ocular cinzenta. O brilho trêmulo de seu pequeno olho, essa natural lente lacrimejante, refletindo o vazio de todo seu espectro melancólico, ilumina, como a lua cheia, um perigoso rastro de lobos. Por ali se guia o homem, direto para a espessa floresta de espinhos densos que o aguarda faminta. Enquanto isso, nas profundezas do labirinto umbroso, a coruja marrom permanece imóvel como uma lasca do tronco seco, sem ramos ou raízes, em cuja cavidade ela se esconde. E desse ponto escuro ela observa, aguardando o fim do infeliz, numa espera indiferente e cínica.


  A armadilha surte efeito. O homem alcança o claustro cerne da selva esquecida, onde a mais longa noite enfim abate seu corpo esmorecido e subjuga sua mente exausta. Então, sobre a desfalecida vítima, a Morte cerra seu maxilar duro, mastigando o cadáver semi-morto do moribundo que não mais resiste. E, assim, rasgando indefinidamente a carne rubra e fedorenta deste decrépito mortal, num frenesim de mastigar alucinante, ela mastiga e cospe, e ri, e mastiga de novo... e continua rindo, e continua mastigando...





Happy Halloween...

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Marx revirando-se no túmulo...






   Após ouvir o que uma típica representante da política socialista tem a dizer sobre sua tão generosa e poética ideologia, e de seu coitado Marx, vejamos o que o próprio tem a dizer.


***


“Um espírito podre está se fazendo sentir em nosso Partido na Alemanha, não tanto entre as massas mas entre os líderes (alta classe e ‘trabalhadores’).

O compromisso com os lassalleanos [seguidores de Lassalle, os social-democratas] também tem nos levado ao compromisso com outros elementos desfalcados; em Berlim (p. ex., Most), com Dühring e seus ‘admiradores’, mas também com todo um bando de estudantes imaturos e doutores super-sensatos que desejam dar uma orientação mais ‘elevada e idealista’ ao socialismo, isto é, substituindo os fundamentos materialistas (que exigem um sério estudo objetivo de qualquer um que tente aplicá-los) pela mitologia moderna com suas deusas da Justiça, Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Dr. Hochberg, que publica o Zukunft (Futuro), é um representante dessa tendência e já ‘se comprou’ ao partido — com as mais ‘nobres’ intenções, suponho... contudo eu não dou a mínima para ‘intenções’.

Os próprios trabalhadores, quando deixam de trabalhar e se tornam escritores profissionais como o Sr. Most e sua laia, incitam sempre algum malefício ‘teórico’ e estão sempre prontos a se ligarem aos imbecis da alegada casta ‘culta’. Especialmente o socialismo utópico, que por décadas e com muito trabalho e esforço nós temos limpado da cabeça dos trabalhadores alemães — e de cuja libertação os tem feito, na teoria e na prática, superiores aos franceses e ingleses —; o socialismo utópico, jogando com imagens fantasiosas da futura estrutura social, está agora tumultuando de uma forma muito mais infrutífera, comparada não só com os grandes utópicos franceses e ingleses, mas com... Weitling. Naturalmente que o utopismo, que no momento anterior ao socialismo materialista-crítico continha seus germes, surgindo agora depois desse só pode ser algo tolo — tolo, obsoleto e basicamente reacionário.

 — KARL MARX (Carta a Friedrich Adolph Sorge, 19 de Outubro de 1877)



***


“É que quando o rapazinho [‘o corcundinha animado’ Wedde] estava em Londres pela primeira vez eu usei a expressão ‘mitologia moderna’ para descrever as deusas da ‘Justiça, Liberdade, Igualdade etc.’ que agora estão novamente em voga; isso gerou nele uma profunda impressão, uma vez que ele próprio havia feito muito à serviço dessas altas entidades.”

 — KARL MARX (Carta a Friedrich Engels, 1 de Agosto de 1877)



***


Cada governo provisório que se forma após uma revolução requer uma ditadura, e por sinal uma ditadura enérgica. Desde o início nós culpamos Camphausen por não ter agido de uma maneira ditatorial, por não ter imediatamente esmagado e removido os restos da antiga instituição.  (...) Nunca se deve ter hesitação em empregar medidas de bem-estar social (medidas públicas salutares) e medidas ditatoriais contra as forças democráticas.

 — KARL MARX (Artigo de Neue Rheinische, 13 de Setembro de 1848)



***


Afinal, o marxismo teria sido deturpado por regimes ditatoriais... ou não seria ele já deturpado em si mesmo?