sábado, 21 de março de 2015

O Paradoxo do Cristianismo


Analisemos, com base nesse vídeo [do link de youtube acima, pois não foi possível postar o vídeo diretamente devido a falhas do Blogspot, o qual também tem dificultado a edição do texto], a retórica de embuste utilizada por este sujeito, Caio Fábio: é de se notar que toda sua “argumentação” apóia-se quase que unicamente em um estilo “poético” de sermão religioso, cujo poder de convencimento recai muito mais na sonora fluência das palavras do que na rigidez dos princípios lógicos em que se deve assentar um raciocínio legitimamente verídico. Pois não é à toa que, com freqüência, vemos esse tipo de retórica surgir de momentos que sugerem estados de transe, e em que se percebe por parte do orador uma inconstante oscilação entre falas mansas, sonsas e teatrais, e tons mais extasiados, eufóricos, como os de um pai de santo manifestado. Além disso, um tipo de raciocínio no qual se alardeia — com um petulante ar de satisfação no próprio erro! — o seu fundamento maior na idéia mesma de absurdo (isto é, na renúncia à lógica, à razão... pois isso que significa absurdo) jamais deveria ter a pretensão de possuir qualquer sentido de veracidade... talvez a de soar esteticamente atrativo ou curioso.

Mas vamos ao problema em si: o paradoxo do cristianismo, como se verifica em Caio Fábio. Esse pode ser posto nos seguintes termos: 

1. Se Cristo expressa apenas um espécie de salvação abstrata, metafórica, que qualquer indivíduo poderia atingir até por meio de uma simples “voz doce no coração”, “uma sabedoria sem nome nem apelido” (ou seja, sem o conhecimento específico das Escrituras — pois é a isso que Caio Fábio está se referindo no fundo, mesmo com todo o cuidado eufemístico de sua linguagem adocicada), então Jesus não pode ser considerado ‘o’ salvador, mas no máximo uma expressão — diga-se, historicamente bastante tardia e repleta de falhas — de concepções antiquíssimas e ainda melhor elaboradas por profetas, poetas e pensadores que nos legaram mensagens muito similares desde vários séculos antes de Jesus (coisas relativas a espiritualidade, amor, humildade, sacrifício etc.)

2. Se Cristo não é somente um eco dessas mensagens bonitinhas, acessíveis dentro de muitos contextos diferentes, mas a única e exclusiva via de salvação (como aliás as próprias Escrituras parecem não deixar muitas dúvidas a respeito), então não é qualquer indivíduo que pode ser salvo simplesmente ouvindo uma “voz suave no peito” ao pressentir o conteúdo simbólico do cristianismo em qualquer imagem vaga e abstrata, mas os que de fato têm acesso a essa via especificamente cristã por estarem em contato direto com a pregação do evangelho, e que, em última instância, foram realmente eleitos por Deus (ainda que num plano da eternidade) para pertencerem a uma determinada cultura em que o cristianismo está presente.

E dessa forma:

1. No primeiro caso, como vemos, Cristo torna-se um tanto dispensável, pois outras vias, talvez até mais eficazes e interessantes, já haviam sido abertas e se fariam acessíveis sem a necessidade da específica mensagem cristã. E, aliás, a própria estória de Jesus torna-se, desse modo, uma contradição, visto que o sacrifício perde todo seu sentido religioso mais profundo (e — ressalta-se — apenas por cuja aceitação, segundo os evangelhos, a salvação seria possível).

2. Mas — no segundo caso —, se não importa somente a mensagem bonitinha e as vagas imagens do coração que coincidiriam com as mensagens cristãs, e que assim poderiam surgir até na mente de um aborígene em abstrações de ideais relativos a humildade e sacrifício; se não é só isso que de fato interessa aqui, mas a existência real de Cristo como um enviado divino que traz a redenção aos crentes através de sua palavra bíblica e possibilidade de testemunho de seu sacrifício... então é evidente que esse Deus, nessa concepção rigorosa, acaba sendo um tanto exclusivista, “calvinista”, “arianista”, “nazista” etc., como propõe Caio Fábio, pois só aqueles que fossem escolhidos para terem acesso a essas palavras e testemunhos é que poderiam se salvar realmente.

É até interessante observamos com mais cuidado a tática retórica desse sujeito. Pois ele demonstra compreender o paradoxo do cristianismo, e até oferece uma explicação razoavelmente detalhada das razões pelas quais o cristianismo teria, nesse caso, um caráter exclusivista da predestinação, que só beneficiaria certos grupos circunscritos a determinados limites “geopolíticos-econômicos-históricos”, isto é, com acesso a este canal da mitologia cristã; sim, ele demonstra que entendeu mais ou menos o problema... mas se o faz, é apenas para malandrosamente dar a impressão de uma suposta superioridade de raciocínio que já teria em si a antecipação de uma resposta incrível e surpreendente a todos os críticos.

Porém, conhecer o paradoxo não é ainda respondê-lo, e se ele mostra saber da existência do paradoxo, já não é verdade que ele nos oferece qualquer resposta a isso. Pois onde estaria exatamente essa resposta? Em parte alguma de seu monólogo confuso, ziguezagueante, dramático e choramingado.

Afinal, o que esse sujeito faz se não reentrar no mesmo paradoxo, contrastando, na sua dialética maluca, uma porção de antíteses conflitantes, de discursos fragmentados e inconclusivos, que no fim só podem mesmo resultar na “síntese do absurdo”?

Senão, vejamos. Em um momento, Calvino — que, nas palavras de Caio Fábio, era um “coitado do século XVI” que, estritamente pelo período histórico em que viveu, não poderia pensar melhor que alguém do nosso século — estava, assim, desautorizado a afirmar certas coisas em questões teológicas ou filosóficas (como, no caso, a de predestinação), pois lhe faltaria o devido acúmulo de saberes (desses meros quatro séculos que se seguiram) que, só desse modo, então, lhe permitiria a correta hermenêutica das escrituras sagradas; a seguir, nesse seu mesmo discurso — que aliás seria facilmente repreendido como evolucionista, historicista e relativista pelos seus colegas cristãos mais ortodoxos (sim, esse senhor, aos olhos de um católico, por exemplo, não passa de um maldito herege, alinhado com o diabo, condenado às chamas infernais) —, a censura de Caio Fábio recai agora sobre o “argumentolinho que ainda faz parte da linearidade temporal de Cronos”, o qual — quão gozado e irônico! — deixa de considerar justamente a simultaneidade de todos os eventos do universo em Deus, e que, por essa razão mesmo, conferiria a certos conhecimentos um caráter de atemporalidade, assim independentes de evolução histórica, apenas por serem revelados através de um canal divino a certos indivíduos espiritualmente, ou intelectualmente, agraciados... o que seria, pois, o caso não só de muitos profetas e teólogos ilustres do cristianismo, mas também do próprio Calvino, criticado minutos antes com base em argumentos opostos, ou seja, evolucionistas, historicistas e relativistas! (Pois é certo que negar esse aspecto teológico significa o mesmo que riscar centenas de páginas da Bíblia, a qual se sustenta sobretudo nessas noções de profecias e revelações incontestáveis de milênios passados... inclusive para justificar a estória de nosso amigo Jesus).

E conforme a dialética do absurdo prossegue na boca inflamada de Caio Fábio, e também nos seus olhinhos meio fechados vislumbrando o além das nuvens douradas, no seu cajado místico que só falta virar uma serpente, e na musiquinha new age ao fundo, com o tom da pregação tornando-se cada vez mais teatralizado, choroso, ambíguo, como o de um louco batendo conhecimentos pseudo-eruditos no liqüidificador de sua esquizofrenia, as antíteses chocam-se ainda mais, revelando-se os contrastes ainda mais gritantes das contradições, e evidenciando toda a loucura desse discurso... até que em um segundo o vemos condenar veementemente a idéia de predestinação (sempre com o uso de adjetivos que denotam sua clara antipatia por certos grupos, como “arianos”, “gregos”, “aristotélicos”) e, no segundo imediatamente seguinte, o vemos, já totalmente despirocado, entrando em parafuso, no curto-circuito de suas antíteses alucinantes, jogar então os braços para o alto, em pura redenção epifânica, agradecendo por ser um desses sortudos predestinados por Deus, pois que, afinal, ele teria recebido a maravilhosa graça divina de estar no “livro da vida”, já que aceitou Cristo e por isso encontra-se já, como bom cristão, na verdade plena... ainda que o conhecimento acerca dessa graça, dessa sorte gratuita, dessa predestinação divina, não possa ser assimilado pela limitada razão humana... apenas ostentado pela inflexível convicção cristã (e, também, como se Calvino tivesse por algum momento tentado justificar suas idéias de predestinação com base em um conhecimento superior de todos os mistérios divinos, em um escrutínio infinito da razão suprema de Deus, e não apenas as afirmado como simples fatos a serem humildemente acatadas e agradecidas por lhe chegarem ao frágil e limitado intelecto humano).

(Obs.: Caio Fábio também parece ter uma certa dificuldade de entender que uma coisa ser “pré-destinada” não significa que ela esteja submetida aos efeitos do tempo, mas exatamente que ela transcende o próprio tempo, estando assim com seu destino traçado no mesmo plano de simultaneidade total e absoluta a que ele se refere quando se põe a criticar a idéia de predestinação apoiando-se, contudo, na idéia de eternidade divina — portanto ele só está o tempo todo confirmando o mesmo conceito de predestinação, embora trocando os termos numa salada bem temperada de poesia e chororô pseudo-filosófico...)

Por fim, analisemos apenas a questão que ele coloca sobre Calvino.

Ora, o que Calvino fez, utilizando sua mente “grega” e “aristotélica” e “linear”, foi na verdade deduzir deste inelutável impasse, implicado por tal paradoxo do cristianismo, a conclusão mais lógica e racional de que, ou o problema deveria recair sobre o primeiro caso (a natureza dispensável de Cristo) ou sobre o segundo (a natureza exclusivista de Cristo); e contudo, como bom representante da causa cristã (ou, poder-se-ia dizer, como uma espécie fiel de "secretário de Cristo"), Calvino, então, sendo minimamente pragmático neste ponto, opta pela segunda alternativa, o que, óbvio, se faz com que sua doutrina adquira um aspecto de fanatismo prepotente e segregacionista, ao menos evita que ela seja relegada a uma questão desprovida das mais altas dimensões metafísicas requeridas para que a fé cristã se firme com um autêntico sentido religioso (e não como um fetiche bobo sujeito aos caprichos humanos — o que ela é no fundo); pois, caso contrário, Cristo tornar-se-ia um elemento meramente historiológico, relativizado, mundano, junto, conseqüentemente, com o cristianismo, as igrejas e pregadores que lhe dão suporte de propagação. (E dessa postura de Calvino acaba decorrendo, ao menos em teoria, que alguns bilhões de inocentes sejam jogados no mar de fogo por simplesmente não aceitarem as palavras e testemunhos de dois mil anos atrás... mas quem liga?)

Portanto, no fim das contas vemos que Calvino utiliza seu pensamento lógico-dedutivo, “grego”, “ariano”, “aristotélico”, apenas como tentativa de salvar as aparências de uma problemática absurda, irracional, passional, e diríamos até “semítica” (pois penso aqui que nos referir a semita desse modo não deve constituir um grande problema para ninguém, já que para Caio Fábio as expressões “grego” e “ariano” podem ser utilizadas de maneira pejorativa, sem que por isso ele seja acusado de “anti-grequismo” ou “anti-arianismo”), algo que talvez sua inteligência confusa e pouco aristotélica não consiga assimilar muito bem... e a depender do que, o cristianismo talvez já tivesse, felizmente, desaparecido há muito, por assim lhe faltar um mínimo de coerência teórica para se manter como algo “sério” no plano das discussões e picuinhas demasiadamente humanas.

quinta-feira, 5 de março de 2015

O imbecil fundamentalista e a mentalidade sectária


   Tratarei agora de algo tão delicado quanto aborrecedor, embora pertinente: a mentalidade sectária do religioso fundamentalista. Afinal é preciso entender que ela, no fundo, representa o mesmo tipo de espírito messiânico, apocalíptico e revolucionário que, igualmente, move o nosso típico esquerdista enfezado, o qual também rejeita este “mundo perverso e decadente” e vive apenas à espera ou em busca do “outro mundo, maravilhoso e perfeito”.

   Assim, essa mentalidade fundamentalista também encontra-se normalmente armada do seguinte dispositivo psicológico de defesa:

   Primeiro ela projeta em um passado mais ou menos remoto (por exemplo, uma certa cristandade medieval onde todos viveriam absolutamente felizes e resignados “em cristo”, o que seria então a versão religiosa do ‘bon sauvage’ de Rousseau, ou do comunismo primitivo de Marx, ou da sociedade de Thule dos nazistas) uma realidade civilizacional quase inteiramente apartada dos eventos reais que compõem um quadro natural de sucessão histórica, com diversos outros complexos civilizacionais inter-relacionados. Desse modo, essa comunidade utópica do passado estaria também desligada de uma dinâmica social verídica, não funcionando mais de acordo com os mecanismos básicos de evolução histórica, como presentes em quaisquer sociedades e civilizações factuais, de qualquer tempo e região do planeta.

   Em seguida, ao “se dar conta” (numa tremenda revelação epifânica, redentora, gnóstica) de que o nosso mundo atual, verdadeiro, empiricamente verificável, encontra-se de fato envolvido até a cintura em um grande processo histórico de forças estranhas a esse seu passado utópico e simplista (que é simplista porque é fictício, e por isso é que não sofreria qualquer influência dessas forças), parece-lhe tremendamente reveladora esta idéia de que uma diabólica trama conspiratória se faz presente no globo, pondo abaixo aquele seu estático mundo de outrora, onde todas as instituições eram constantemente respeitadas por todos e sua bela comunidade jamais se subordinaria a qualquer interesse “estranho” (de grupos internacionais, sociedades secretas, povos estrangeiros, seitas satânicas, e o que mais que possa amedrontá-lo).

   Quer dizer, como se o mundo, que estaria seguindo um certo traçado ideal e perfeito até este momento, de repente sofresse uma ruptura drástica em seus próprios padrões de progressão histórica, saindo então daquela luz divina de antes para cair nas trevas demoníacas de hoje... e não como se apenas a sua percepção é que estivesse desajustada do mundo real, produzindo imaginariamente essa ruptura sem sentido entre um “passado glorioso” e um “presente amaldiçoado”.

   Por exemplo, o típico católico fundamentalista crê mesmo que hoje a maçonaria estaria dominando todas as instâncias políticas e midiáticas da Terra, e que estaria em curso um terrível plano de dominação global das elites anti-cristãs, cujo intuito maior — e cuja conseqüência mais devastadora! — seria a destruição completa de sua tão bonita igrejinha (e claro que essa seria a conseqüência mais devastadora, para ele, já que sua igreja só pode ser o centro de todo o seu mundinho, assim como seu umbigo cristão deve ser o centro de todo o universo).

   O que no entanto ele tem uma certa dificuldade de perceber é que essas “satânicas forças conspiratórias” que hoje se observam em curso SÃO AS MESMAS que, lá atrás, foram responsáveis pela própria criação de sua mesma igrejinha católica, também toda infiltrada desde o princípio por uma série de elementos misticistas, ocultistas, ou comunistóides e fascistóides — e, sim, com o mesmo projeto de dominação imperialista que prometia a paz universal em troca da conversão de todos a um determinado sistema de crença e organização social.

   Mas ô católico burro, pelo amor de jeová (se é que há nessa criatura um pingo de amor e sensatez), entenda de uma vez por todas: não existe nada de místico, puro ou sacrossanto nessa sua mundana instituição. Ela pode ter sido tão perversa, cínica e metida em projetos de dominação, em esquemas de espionagem, e enrolada em ocultismos e misticismos baratos (como por exemplo a idéia de um sujeito que nasce de um útero fecundado espontaneamente e, após sua morte, levanta da tumba que nem o Conde Drácula) quanto no caso da maçonaria atualmente — e, ainda assim, ela pode ter representado ao seu tempo uma coisa tão necessária, útil e em diversos pontos benigna quanto representa hoje a maçonaria, na medida em que ambas se encontram inseridas em um certo processo histórico natural de uma sociedade.

   Assim, o que deveria nos interessar realmente é o entendimento de que, por trás deste variado conjunto de forças históricas, que se revestem ou se moldam em torno de certos agentes institucionais — como a nação x ou y, a religião x ou y, a igreja x ou y, a sociedade secreta x ou y —, deve haver um parâmetro mais sólido e lógico, pelo qual pessoas de inteligência superior podem então interpretar de maneira friamente analítica a dinâmica toda desse processo, a fim de chegar a um veredicto mais realista da situação geral do mundo.

   Um tipo como Marx estava certamente interessado nisso; suas teorias se baseiam nessa perspectiva (e eu, como autêntico conservador, não preciso dizer que ele estava errado — mas estava errado não por querer partir de uma perspectiva realista, e sim por uma série de conclusões equivocadas que se acham no meio de seus estudos e divagações insanas; do mesmo modo que teorias da evolução podem estar erradas, sem no entanto invalidar a perspectiva da evolução como teoria explicativa de um certo processo natural, pois equívocos também podem residir em aspectos pontuais e não somente na abordagem como um todo). Explicado o óbvio, é preciso dizer, além disso, que não só Marx estava interessado em explicar a dinâmica política, social e econômica do mundo: muitos pensadores, antes de Marx, durante a época de Marx, e depois de Marx, já caminhavam nesse sentido... e por quê? Porque, ora, isso é o natural em termos de desenvolvimento do pensamento humano!

  É certo que, munido mais uma vez daquele seu dispositivo infantil e mongolóide de defesa, o fundamentalista tentará aqui atribuir todo o pensamento moderno a alguma coisa satânica, colocando tudo no mesmo balaio de perversões modernas contra seu coitadíssimo e oprimidinho cristianismo, como se tudo que houvesse na face da terra partisse sempre da mesma trama maligna do Anti-Cristo que deseja somente destruir suas supremas e incontestáveis verdades... verdades essas que, por uma determinação divina um tanto suspeita, além de serem extremamente fantasiosas e absolutamente improváveis, estariam circunscritas a um único ponto da história, em posse de um único povo, de uma única cultura: A SUA PRÓPRIA, EVIDENTEMENTE! — e o mesmo se aplica ao judaísmo no caso dos judeus, ao islamismo no caso dos muçulmanos, e assim por diante: todos sempre enxergando a si mesmos como os amabilíssimos protagonistas de um tenebroso enredo conspiratório (onde a crença no saci-pererê só mostra o quão “aberto” se está ao milagre e àquele singelo sentimento de fé no impossível, enquanto a crença no curupira só pode ser uma mentira deslavada, irracional, demoníaca, ainda mais se ela estiver competindo com o saci como um símbolo grupal de culto).

   E veja como esse dispositivo de defesa é muito útil ao religioso fundamentalista, pois dessa forma ele consegue, na sua cabecinha de melão, jogar no mesmo saco de idéias as que foram propostas por Marx e as que foram propostas por quaisquer outros pensadores modernos, já que todas elas estariam igualmente conspirando para o mesmo troço perverso que domina este mundo (exceto os seus troços particulares, pois, é claro, esses seriam a exceção das exceções), e todas ligadas à mesma rede maldita em que se acham atados o cientificismo, o ateísmo, o feminismo, o gayzismo, o veganismo etc. Já o fato de que esse católico bobo consegue muito bem separar a ‘teologia da libertação’ (uma vertente comunista do catolicismo) e seu novo Papa esquerdista da sua doutrina pura e sacrossanta, sem necessariamente considerar a inegável unidade católica que há entre essas coisas todas (pois o esquerdismo só estaria presente na teologia da libertação e no atual Papa xarope da Argentina), pelo visto não lhe permite adotar o mesmo critério elementar que, da mesma forma, poderia muito bem separar Marx de qualquer outro pensador moderno, os quais, apesar de compartilharem da unidade moderna, não necessariamente compartilham de uma mesma unidade esquerdista, ou feminista, ou gayzista, ou ateísta, ou simplesmente “diabólica e perversa”.

   Mas o fato é que esse religioso fundamentalista está impedido desse tipo de abstração elementar pois o que lhe interessa jamais é a simples busca da verdade: é que ele está quase sempre e exclusivamente limitado à simples defesa de seu grupinho cute-cute, que ele crê destacado em um plano estático da história e livre de todos os processos naturais de evolução civilizacional (como se esse grupo tivesse surgido do nada e, isolado na ilha dos anjinhos, apenas devesse combater tudo ao seu redor para manter sua intocável pureza neste mundo diabólico)... ou ele simplesmente encontra-se apegado demais às suas “raízes puras familiares”, com seus estilosos brasões e santinhos enfeitando a sala e receitinhas da vovó, ou, enfim, ao que quer que o ligue nostalgicamente a esse passado ideal, de uma cristandade mágica, imbuída da verdade suprema e absoluta. Porém nós, um pouco menos afeitos a caprichinhos e fetiches bobos de auto-adulação grupal, sabemos bem que tudo isso não passa, no fim das contas, de um mero apego sentimentalóide ligado a um dispositivo de defesa do grupo a que fulano pertence... e mais nada! (E por isso só pode se tratar de uma fraqueza de caráter.)

   Mas voltando-se ao ponto que mais deveria nos interessar, que é entender o que realmente se passa no mundo: é preciso então compreender que, dentre estas forças históricas todas, é possível a um sujeito mais inteligente, racional, sincero, desapegado de panelinhas, encontrar um legítimo parâmetro de análise, seguro e eficiente o bastante para lhe permitir interpretar certos aspectos da dinâmica desse processo histórico, social, político e econômico, e assim chegar a uma conclusão mais realista acerca da situação global que temos hoje. Desse modo ele pode entender que a Igreja Católica, ou a Maçonaria, ou os Estados Unidos da América, ou a União Européia, ou a Organização das Nações Unidas, ou a falida União Soviética, ou o Foro de São Paulo, representam apenas cascas de todo um jogo mais intrincado e profundo de forças geopolíticas, que por sua vez refletem apenas certos tipos de mentalidades vigentes.

   Por essa razão é que o perigo nunca está tanto numa instituição em si, mas nas forças que se encontram por trás dela num determinado momento e posicionadas de acordo com uma certa estratégia política; mais ainda, é preciso entender que por trás desses agentes não existe somente, de maneira simplória, uma força x ou y, mas um complexo emaranhado de múltiplas forças, das mais variadas naturezas, às vezes até opostas entre si, e que desse modo acabam gerando um equilíbrio (ou desequilíbrio) sutilíssimo de se captar. Em última análise, essas forças representam as mentalidades vigentes que se apoderam das instituições e grupos propriamente ditos.

   Logo, o fundamental aqui é a análise dos tipos de mentalidades vigentes (seja na sociedade como um todo, seja em certos grupos de influência), para que então possamos compreender melhor todas essas estruturas e dinâmicas históricas, políticas, sociais e econômicas. Esse deve ser o verdadeiro trabalho de um intelectual sério, comprometido com essas investigações. Por isso — e digo isto de maneira enfática e categórica — não tem como haver qualquer avanço considerável nesses assuntos caso ainda sejam mantidas essas mentalidades sectárias, de grupinhos super-protecionistas consigo próprios, como verificamos tanto entre comunistas como entre religiosos (pelo menos os que levam a sério suas fábulas idiotas, ou seja, os fundamentalistas). Um basta a todos esses imbecis.