quinta-feira, 5 de março de 2015

O imbecil fundamentalista e a mentalidade sectária


   Tratarei agora de algo tão delicado quanto aborrecedor, embora pertinente: a mentalidade sectária do religioso fundamentalista. Afinal é preciso entender que ela, no fundo, representa o mesmo tipo de espírito messiânico, apocalíptico e revolucionário que, igualmente, move o nosso típico esquerdista enfezado, o qual também rejeita este “mundo perverso e decadente” e vive apenas à espera ou em busca do “outro mundo, maravilhoso e perfeito”.

   Assim, essa mentalidade fundamentalista também encontra-se normalmente armada do seguinte dispositivo psicológico de defesa:

   Primeiro ela projeta em um passado mais ou menos remoto (por exemplo, uma certa cristandade medieval onde todos viveriam absolutamente felizes e resignados “em cristo”, o que seria então a versão religiosa do ‘bon sauvage’ de Rousseau, ou do comunismo primitivo de Marx, ou da sociedade de Thule dos nazistas) uma realidade civilizacional quase inteiramente apartada dos eventos reais que compõem um quadro natural de sucessão histórica, com diversos outros complexos civilizacionais inter-relacionados. Desse modo, essa comunidade utópica do passado estaria também desligada de uma dinâmica social verídica, não funcionando mais de acordo com os mecanismos básicos de evolução histórica, como presentes em quaisquer sociedades e civilizações factuais, de qualquer tempo e região do planeta.

   Em seguida, ao “se dar conta” (numa tremenda revelação epifânica, redentora, gnóstica) de que o nosso mundo atual, verdadeiro, empiricamente verificável, encontra-se de fato envolvido até a cintura em um grande processo histórico de forças estranhas a esse seu passado utópico e simplista (que é simplista porque é fictício, e por isso é que não sofreria qualquer influência dessas forças), parece-lhe tremendamente reveladora esta idéia de que uma diabólica trama conspiratória se faz presente no globo, pondo abaixo aquele seu estático mundo de outrora, onde todas as instituições eram constantemente respeitadas por todos e sua bela comunidade jamais se subordinaria a qualquer interesse “estranho” (de grupos internacionais, sociedades secretas, povos estrangeiros, seitas satânicas, e o que mais que possa amedrontá-lo).

   Quer dizer, como se o mundo, que estaria seguindo um certo traçado ideal e perfeito até este momento, de repente sofresse uma ruptura drástica em seus próprios padrões de progressão histórica, saindo então daquela luz divina de antes para cair nas trevas demoníacas de hoje... e não como se apenas a sua percepção é que estivesse desajustada do mundo real, produzindo imaginariamente essa ruptura sem sentido entre um “passado glorioso” e um “presente amaldiçoado”.

   Por exemplo, o típico católico fundamentalista crê mesmo que hoje a maçonaria estaria dominando todas as instâncias políticas e midiáticas da Terra, e que estaria em curso um terrível plano de dominação global das elites anti-cristãs, cujo intuito maior — e cuja conseqüência mais devastadora! — seria a destruição completa de sua tão bonita igrejinha (e claro que essa seria a conseqüência mais devastadora, para ele, já que sua igreja só pode ser o centro de todo o seu mundinho, assim como seu umbigo cristão deve ser o centro de todo o universo).

   O que no entanto ele tem uma certa dificuldade de perceber é que essas “satânicas forças conspiratórias” que hoje se observam em curso SÃO AS MESMAS que, lá atrás, foram responsáveis pela própria criação de sua mesma igrejinha católica, também toda infiltrada desde o princípio por uma série de elementos misticistas, ocultistas, ou comunistóides e fascistóides — e, sim, com o mesmo projeto de dominação imperialista que prometia a paz universal em troca da conversão de todos a um determinado sistema de crença e organização social.

   Mas ô católico burro, pelo amor de jeová (se é que há nessa criatura um pingo de amor e sensatez), entenda de uma vez por todas: não existe nada de místico, puro ou sacrossanto nessa sua mundana instituição. Ela pode ter sido tão perversa, cínica e metida em projetos de dominação, em esquemas de espionagem, e enrolada em ocultismos e misticismos baratos (como por exemplo a idéia de um sujeito que nasce de um útero fecundado espontaneamente e, após sua morte, levanta da tumba que nem o Conde Drácula) quanto no caso da maçonaria atualmente — e, ainda assim, ela pode ter representado ao seu tempo uma coisa tão necessária, útil e em diversos pontos benigna quanto representa hoje a maçonaria, na medida em que ambas se encontram inseridas em um certo processo histórico natural de uma sociedade.

   Assim, o que deveria nos interessar realmente é o entendimento de que, por trás deste variado conjunto de forças históricas, que se revestem ou se moldam em torno de certos agentes institucionais — como a nação x ou y, a religião x ou y, a igreja x ou y, a sociedade secreta x ou y —, deve haver um parâmetro mais sólido e lógico, pelo qual pessoas de inteligência superior podem então interpretar de maneira friamente analítica a dinâmica toda desse processo, a fim de chegar a um veredicto mais realista da situação geral do mundo.

   Um tipo como Marx estava certamente interessado nisso; suas teorias se baseiam nessa perspectiva (e eu, como autêntico conservador, não preciso dizer que ele estava errado — mas estava errado não por querer partir de uma perspectiva realista, e sim por uma série de conclusões equivocadas que se acham no meio de seus estudos e divagações insanas; do mesmo modo que teorias da evolução podem estar erradas, sem no entanto invalidar a perspectiva da evolução como teoria explicativa de um certo processo natural, pois equívocos também podem residir em aspectos pontuais e não somente na abordagem como um todo). Explicado o óbvio, é preciso dizer, além disso, que não só Marx estava interessado em explicar a dinâmica política, social e econômica do mundo: muitos pensadores, antes de Marx, durante a época de Marx, e depois de Marx, já caminhavam nesse sentido... e por quê? Porque, ora, isso é o natural em termos de desenvolvimento do pensamento humano!

  É certo que, munido mais uma vez daquele seu dispositivo infantil e mongolóide de defesa, o fundamentalista tentará aqui atribuir todo o pensamento moderno a alguma coisa satânica, colocando tudo no mesmo balaio de perversões modernas contra seu coitadíssimo e oprimidinho cristianismo, como se tudo que houvesse na face da terra partisse sempre da mesma trama maligna do Anti-Cristo que deseja somente destruir suas supremas e incontestáveis verdades... verdades essas que, por uma determinação divina um tanto suspeita, além de serem extremamente fantasiosas e absolutamente improváveis, estariam circunscritas a um único ponto da história, em posse de um único povo, de uma única cultura: A SUA PRÓPRIA, EVIDENTEMENTE! — e o mesmo se aplica ao judaísmo no caso dos judeus, ao islamismo no caso dos muçulmanos, e assim por diante: todos sempre enxergando a si mesmos como os amabilíssimos protagonistas de um tenebroso enredo conspiratório (onde a crença no saci-pererê só mostra o quão “aberto” se está ao milagre e àquele singelo sentimento de fé no impossível, enquanto a crença no curupira só pode ser uma mentira deslavada, irracional, demoníaca, ainda mais se ela estiver competindo com o saci como um símbolo grupal de culto).

   E veja como esse dispositivo de defesa é muito útil ao religioso fundamentalista, pois dessa forma ele consegue, na sua cabecinha de melão, jogar no mesmo saco de idéias as que foram propostas por Marx e as que foram propostas por quaisquer outros pensadores modernos, já que todas elas estariam igualmente conspirando para o mesmo troço perverso que domina este mundo (exceto os seus troços particulares, pois, é claro, esses seriam a exceção das exceções), e todas ligadas à mesma rede maldita em que se acham atados o cientificismo, o ateísmo, o feminismo, o gayzismo, o veganismo etc. Já o fato de que esse católico bobo consegue muito bem separar a ‘teologia da libertação’ (uma vertente comunista do catolicismo) e seu novo Papa esquerdista da sua doutrina pura e sacrossanta, sem necessariamente considerar a inegável unidade católica que há entre essas coisas todas (pois o esquerdismo só estaria presente na teologia da libertação e no atual Papa xarope da Argentina), pelo visto não lhe permite adotar o mesmo critério elementar que, da mesma forma, poderia muito bem separar Marx de qualquer outro pensador moderno, os quais, apesar de compartilharem da unidade moderna, não necessariamente compartilham de uma mesma unidade esquerdista, ou feminista, ou gayzista, ou ateísta, ou simplesmente “diabólica e perversa”.

   Mas o fato é que esse religioso fundamentalista está impedido desse tipo de abstração elementar pois o que lhe interessa jamais é a simples busca da verdade: é que ele está quase sempre e exclusivamente limitado à simples defesa de seu grupinho cute-cute, que ele crê destacado em um plano estático da história e livre de todos os processos naturais de evolução civilizacional (como se esse grupo tivesse surgido do nada e, isolado na ilha dos anjinhos, apenas devesse combater tudo ao seu redor para manter sua intocável pureza neste mundo diabólico)... ou ele simplesmente encontra-se apegado demais às suas “raízes puras familiares”, com seus estilosos brasões e santinhos enfeitando a sala e receitinhas da vovó, ou, enfim, ao que quer que o ligue nostalgicamente a esse passado ideal, de uma cristandade mágica, imbuída da verdade suprema e absoluta. Porém nós, um pouco menos afeitos a caprichinhos e fetiches bobos de auto-adulação grupal, sabemos bem que tudo isso não passa, no fim das contas, de um mero apego sentimentalóide ligado a um dispositivo de defesa do grupo a que fulano pertence... e mais nada! (E por isso só pode se tratar de uma fraqueza de caráter.)

   Mas voltando-se ao ponto que mais deveria nos interessar, que é entender o que realmente se passa no mundo: é preciso então compreender que, dentre estas forças históricas todas, é possível a um sujeito mais inteligente, racional, sincero, desapegado de panelinhas, encontrar um legítimo parâmetro de análise, seguro e eficiente o bastante para lhe permitir interpretar certos aspectos da dinâmica desse processo histórico, social, político e econômico, e assim chegar a uma conclusão mais realista acerca da situação global que temos hoje. Desse modo ele pode entender que a Igreja Católica, ou a Maçonaria, ou os Estados Unidos da América, ou a União Européia, ou a Organização das Nações Unidas, ou a falida União Soviética, ou o Foro de São Paulo, representam apenas cascas de todo um jogo mais intrincado e profundo de forças geopolíticas, que por sua vez refletem apenas certos tipos de mentalidades vigentes.

   Por essa razão é que o perigo nunca está tanto numa instituição em si, mas nas forças que se encontram por trás dela num determinado momento e posicionadas de acordo com uma certa estratégia política; mais ainda, é preciso entender que por trás desses agentes não existe somente, de maneira simplória, uma força x ou y, mas um complexo emaranhado de múltiplas forças, das mais variadas naturezas, às vezes até opostas entre si, e que desse modo acabam gerando um equilíbrio (ou desequilíbrio) sutilíssimo de se captar. Em última análise, essas forças representam as mentalidades vigentes que se apoderam das instituições e grupos propriamente ditos.

   Logo, o fundamental aqui é a análise dos tipos de mentalidades vigentes (seja na sociedade como um todo, seja em certos grupos de influência), para que então possamos compreender melhor todas essas estruturas e dinâmicas históricas, políticas, sociais e econômicas. Esse deve ser o verdadeiro trabalho de um intelectual sério, comprometido com essas investigações. Por isso — e digo isto de maneira enfática e categórica — não tem como haver qualquer avanço considerável nesses assuntos caso ainda sejam mantidas essas mentalidades sectárias, de grupinhos super-protecionistas consigo próprios, como verificamos tanto entre comunistas como entre religiosos (pelo menos os que levam a sério suas fábulas idiotas, ou seja, os fundamentalistas). Um basta a todos esses imbecis.

Nenhum comentário:

Postar um comentário