quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Entrevista de Geraldo Vandré para a Globo News (parcial e comentada por mim em azul)

Entrevista de Geraldo Vandré para o jornalista Geneton Moraes Neto, no programa 'Dossiê' do canal Globo News, dia 12 de setembro de 2010. Essa é a primeira vez que Geraldo se manifesta em público depois de 37 anos.

 - O que aconteceu com Geraldo Vadré?
 - Ficou fora dos acontecimentos (risos). Quando, na juventude, terminei meu curso de Direito no Rio de Janeiro e fui me dedicar a uma carreira artística, já sabia que arte era cultura inútil. Mas, tempos depois, consegui me tornar mais inútil do que qualquer artista, porque hoje sou advogado num tempo sem lei. Quer coisa mais inútil que isso?
 - O fato de sua música 'Caminhando' ter se tornado uma espécie de hino de protesto provoca o que em você, hoje? Orgulho ou irritação?
 - Não tenho nada que corrigir do meu passado. Mas não concordo com essa denominação 'música de protesto'. Protesto é coisa de quem não tem poder. Eu não fazia protesto, eu fazia canções brasileiras.
 - Você teve uma divergência artística com os tropicalistas, entre eles Caetano Veloso e Gilberto Gil. Hoje, você ainda considera ruim a música que eles faziam na época?
 - Para essa pergunta, eu me lembro da resposta do próprio Gil, que uma vez me disse que fazia qualquer coisa e uma tinha que dar certo. (muda para um semblante mais sério) Eu não faço qualquer coisa.
 - Mas você mudou de opinião sobre os tropicalistas?
 - Parece que eles continuam na mesma.
 - Em que país vive Geraldo Vandré?
 - No Brasil que não está aqui. Ou melhor, Geraldo vive no Brasil, e até me atreveria a dizer que quem não vive no Brasil é a quase totalidade dos brasileiros.
 - Como é esse Brasil de Geraldo Vandré?
 - É o de antes, de quarenta anos atrás, quando não existia esse processo de massificação.
 - O Brasil de quarenta anos atrás era melhor do que o de hoje?
 - Olha, eu fazia música para aquele país.
 - E por que não fazer música para o Brasil de hoje?
 - Porque o que existe atualmente, como lhe falei, é cultura de massa, não é cultura artística brasileira. Para essa não há mais espaço.
 - Você se considera então uma espécie de exilado que vive dentro do Brasil?
 - É, eu me afastei das minhas atividades até 68 e não retornei a elas.
 - Você diria que o Brasil é um país ingrato?
 - Não, de forma alguma. Guerra é guerra. E eu não perdi (risos). Tem um poema do Gonçalves Dias, que eu lembro que meu pai me dizia, que é assim: 'Não chores, meu filho. Não chores que viver é lutar. A vida, meu filho, é combate, é luta renhida, que os fracos abate, e os fortes e bravos só pode exaltar.'
 - Quando você se lembra do maracanãzinho inteiro cantando 'Caminhando', que sentimento você tem?
 - Aquilo foi muito bonito. Pena que eu não possa ver o VT. Estão guardando e eu não sei pra quê. Eu quero ver. Está lá na estação, procure lá. (rindo e olhando para a câmera) Consegue o VT aí pra mim. Tem o Tom Jobim lá, é o mesmo VT. Sumiram com a minha parte. Por quê? 

 [Um aviso surge na tela: 'As imagens da participação de Vandré no Festival Internacional da Canção de 1968 não foram localizadas. Restou o áudio'. A fita é tocada e se pode ouvir a vaia do público ao jurado que premiara Chico Buarque e Tom Jobim, enquanto a maioria queria que o prêmio fosse para a música 'Caminhando'. Então se ouve a intromissão de Geraldo Vandré dizendo ao microfone para a platéia: "Gente, por favor. Antônio Carlos Jobim e Chico Buarque de Hollanda merecem nosso respeito. A nossa função é fazer canções. A função de julgar, nesse instante, é do júri que ali está. Tem mais uma coisa só. A vida não se resume em festivais."]

 - Você tem saudade daquela época?
 - Saudades... (em tom de reflexão). É, um pouco, mas também tem tanta coisa pra fazer que não dá muito tempo de sentir saudades.
 - Você vive do que hoje? Recebe direitos autorais?
 - Não, nunca dependi de música para viver. Eu sou servidor público federal e hoje estou aposentado. Sobre os direitos autorais, eles pagam o que querem, e não existe controle ou critério sobre isso. Se nós tivéssemos direito de autor, nós teríamos os direitos conexos, os direitos de marcas, patentes, propriedade industrial, essas coisas todas. Mas aí nós não seríamos subdesenvolvidos, né? Esse assunto é muito complexo.
 - Se você fosse escrever um verbete no dicionário sobre o Geraldo Vandré, qual seria a primeira frase?
 - Criminoso (risada). Isso que você chama de governo, ou o que se apresenta como governo até hoje, me tem como anistiado. E anistia é para criminoso.
 - Você teria cometido o delito de opinião?
 - Não, eu acho que era subversão mesmo. (...) Mas as Forças Armadas propriamente ditas entenderam muito melhor do que a sociedade civil. Nunca tive problemas com as Forças Armadas. Sempre houve uma consideração e respeito entre nós.
 - Logo após voltar do exílio, por que você resolveu se afastar totalmente da carreira artística? Você foi maltratado fisicamente aqui?
 - Não existe nesse país que está aí um público...
 - (repórter interrompendo) Não, na época...
 - Já era assim, essa época ao qual você se refere já é o hoje que estou falando. Já era como está agora. Quando voltei do exílio, o Brasil já estava assim, num processo de massificação. O público para quem eu havia escrito e composto quatro anos e meio antes já não existia mais. E isso foi de mal a pior. (...) Pra você ter uma idéia, quando me mudei pra São Paulo em 1961, a cidade tinha 4 milhões de habitantes, hoje são 16 milhões de amontoados. Isso é um genocídio.
 - Quer dizer, a decisão de interromper a carreira então foi de certa forma um protesto contra o que você via como a massificação da sociedade brasileira?
 - Não, não! Foi por uma falta de motivo, uma falta de razão, falta de porquê. Protesto não.
 - Um outro grande nome que se celebrizou como opositor do regime militar na música brasileira foi Chico Buarque de Hollanda. Você acompanhou o que ele fez depois?
 - O Chico teve um caminho diferente do meu. Ele não chegou a parar, ele continuou produzindo muito. Eu estava fora. Quando retornei, fiz uma tentativa de apresentação num programa de televisão que não vem ao caso qual. Não gostei do que aconteceu ali, o jogo de pressões que havia. Eu recuei. E depois passou-se um tempo, aí a própria Globo queria fazer um festival e chegaram a me procurar. Mas eu não tinha interesse de participar.
 - Mas você acompanhou a produção de Chico Buarque de Hollanda? O que ela significa pra você?
 - Acho que ele é uma pessoa muito talentosa, uma pessoa muito importante, né? Um grande artista.
 - Você perdeu contato com todos os seus companheiros de geração na música?
 - Eu nunca fui muito enfronhado no meio artístico. Eu fazia minhas coisas e voltava para minhas atividades extra-musicais.
 - O fato de você ter composto uma música em homenagem às Forças Aéreas criou um certo espanto. Hoje você se hospeda em hotéis da Aeronáutica como este aqui. Nós estamos em um ambiente militar. Em que momento houve essa mudança?
 - Esse é relativamente um ambiente militar, quer dizer, isso aqui é um instituto de direito privado, né? Não houve mudança na minha postura. O que teve foi um reconhecimento de uma parte da sociedade (se referindo aos militares) que nunca tinha tido oportunidade de saber realmente quais eram minhas posições.
 - Hoje você nega que tenha sido em algum momento anti-militarista.
 - Nunca fui anti-militarista. Eu falei o que achava que tinha que dizer numa canção que foi cantada no Brasil para todo mundo, inclusive para os soldados.
 - O grande equívoco sobre Geraldo Vandré foi este de achar que você é anti-militarista?
 - Olha... eu acho que na realidade não houve um grande equívoco. Houve uma grande manipulação. Porque quanto mais proibido, mais sucesso fazia, mais se vendia, e menos conta se prestava. Essa é uma questão muito séria.
 - Você foi constrangido a gravar, em 1973, um depoimento em que negava que fosse um militante político. Qual foi o peso deste depoimento na decisão de interromper a carreira?
 - Eu nunca fui constrangido a declarar que não tive militância política, porque eu nunca tive militância política partidária. Eu nunca pertenci a nenhum partido e nunca fui um político profissional. (...) Eu me lembro de um professor de filosofia que dizia que o homem é um animal político (...) Então vamos estudar a diferença entre política (no sentido amplo) e eleição (política no sentido estrito, partidário)?
 - Que recordação você guarda desse depoimento? Você foi levado para uma sala do Aeroporto de Brasília e gravou um depoimento em que, de certa maneira, renegava... Você queria esclarecer esse assunto?
 - Eu não me lembro exatamente. Eu gostaria de ver a declaração... porque houve montagem. Era gravação e o que foi para o ar eu não sei.
 - Mas é que esse depoimento causou um espanto na época, porque era você negando a militância política.
 - Eu nunca fui um militante político.
 - Então negando o engajamento político.
 - Se engajamento político é pertencer a um partido, eu nunca fui engajado politicamente.
 - Mas você foi obrigado a gravar esse depoimento. Ou pelo menos fazia parte do acordo para voltar para o Brasil
 - Não, eles queriam que eu desse uma declaração e que dissesse... olha, eu não sei, eu não me lembro... eu disse algumas coisas lá que eu achei que podia dizer, e o que disse era verdade. Não disse nada que eu não tenha querido dizer.

 [O ponto de vista do entrevistador insiste na idéia de que Geraldo Vandré teria sido brutalmente violado pelos militares em seu direito civil de ir e vir em paz, sem a necessidade de dar qualquer satisfação ao governo brasileiro, mesmo em um momento conturbado no qual a direita e a esquerda digladiavam pelo poder, a primeira com o apoio internacional dos EUA, a segunda com o apoio internacional - vale frisar, também financeiro e militar - da URSS e aliados do eixo soviético, especialmente Cuba, que dava todo suporte para guerrilheiros tupiniquins, isso tudo com fins de implantar no Brasil o mesmo regime praticado nesses lugares. Com isso, o jornalista pinta uma versão favorável à esquerda, como se apenas a direita praticasse esse tipo de coerção de indivíduos e pressão ideológica. Além do quê, o condutor da entrevista quer forçar uma imagem de extrema crueldade e violência numa simples e típica medida protocolar que não envolvia nenhuma tortura ou agressão (algo que, em um mundo altamente burocratizado como o de hoje, não deveria surpreender ninguém mais), e que na verdade exigia apenas que Geraldo Vandré desse alguns esclarecimentos na posição de um exilado que retorna ao seu país após ter fugido, e de quem sempre houve suspeitas claras de estar cooperando com a esquerda, sendo essa, aliás, uma associação que o próprio Geraldo Vandré admite ser razoável, visto que cantava músicas de teor subversivo. Ironicamente, esse programa de TV torna-se tão coercivo na maneira de colher as informações convenientes para construir a tese pré-estabalecida que deseja transmitir ao seu público, torcendo o entrevistado de todas as formas retóricas possíveis, que se deixa de notar o óbvio: a atitude tendenciosa da Globo reflete perfeitamente o mesmo tipo de postura que os militares, pelas razões deles, tiveram com Geraldo Vandré naquela ocasião.]

 - Só pra esclarecer esse episódio, do depoimento que você gravou quando voltou do exílio. Você gravou o depoimento numa sala do Aeroporto de Brasília. Que lembranças exatamente você tem e quem pediu a você que gravasse esse depoimento? O DOPS, o Exército?
 - Aquelas declarações foram feitas para uma pessoa que se me apresentava como sendo da Polícia Federal.

 [Surge na tela um pequeno texto explicativo, alertando o telespectador de que o ano era da ditadura militar sob o governo de Médici, enquanto isso sons de marcha marcial podem ser ouvidas ao fundo.]

 - Eu cheguei aqui, no Brasil, no dia 14 de Julho. Dois meses depois eu apareço como se tivesse chegando à Brasília. Achei tudo muito manipulado, sabe? É essa história dos VT's. Normalmente nós temos essa doença (apontando ao redor de si em direção às câmeras que o filmam). Eu estou falando aqui, o que vai ser mostrado vai ser uma seleção feita pela estação. Não vai ser o que eu estou dizendo. Isso é muito sério.

 [Durante esse momento, a entrevista passa a ser filmada de dentro do estúdio de edição, a chamada ilha. As imagens de Geraldo Vandré são captadas por uma câmera que filma a entrevista sendo transmitida por vários monitores dentro desse estúdio, com os vários painéis de controle ao redor. Passa-se claramente, em um cínico tom de chacota e ameaça, a idéia de que o Gerado Vandré estaria paranóico, alucinando, pois isso que disse não foi censurado, como ele supostamente sugere que aconteceria. No entanto, a entrevista é de fato toda manipulada, só que de forma mais sutil e sorrateira.]

 - Mas esse depoimento, pra encerrar esse assunto, teve algum peso na sua decisão de interromper a carreira?
 -  Não, eu estava chegando, vendo como estavam as coisas, eu não tinha a menor noção da realidade. Precisava passar por um processo de adaptação.
 - Se você tivesse a chance de hoje se dirigir a uma platéia de jovens, o que diria?
 - Vocês vão ter que votar, né? Eu 'tou por fora.
 - Que papel você acha que vai caber a Geraldo Vandré na história da música popular brasileira moderna?
 - Nunca fiz esse tipo de avaliação.
 - Você se acha suficientemente reconhecido?
 - Eu obtive o reconhecimento que eu procurei.
 - Em algum momento você se arrepende de ter interrompido a carreira?
 - Não. Raramente eu me arrependo das coisas que faço. Calculo bem as coisas, reflito bem, meço bem antes. Quando faço, já é pra ficar feito mesmo. Não tem arrependimento.
 - É verdade que você ficou escondido na casa de Guimarães Rosa antes de ir para o exílio?
 - Depois que o tempo vai passando, as coisas vão ficando claras. A FAB (Força Aérea Brasileira) propriamente dita não tinha nada contra mim porque eu andava por aí, estava às mãos dela o tempo todo e nada me acontecia. Mas para evitar que qualquer guardinha da rua pudesse tirar um proveito da situação, porque também tinha bastante isso, eu preferi sair de circulação. Então durante um tempo eu estive na casa da mulher de Guimarães Rosa. 

 [Mais algumas notinhas históricas são mostradas na tela, contando que os mesmos agentes que prenderam Caetano Veloso e Gilberto Gil em dezembro de 1968, em São Paulo, tentaram prender Geraldo Vandré, o qual, porém, teria escapado graças à ajuda da mulher de Caetano. Insinua-se, assim, que Gil, Caetano e sua esposa foram os heróis da pátria, que inclusive ajudaram Vandré, e esse foi o grande traidor dos camaradas, pois sequer reconhece, hoje, o heroísmo deles. A marchinha militar de escárnio é ouvida ao fundo.]

 - Em que posição você escala a música 'Disparada' dentro de sua obra? Qual você acha que é a obra-prima de Geraldo Vandré?
 - Acho que todas são iguais. Isso da 'obra-prima' é uma questão de predileção do público, dos meios de comunicação e dos chamados formadores de opinião.
 - Mas você deve ter uma predileção pessoal. Qual é?
 - Não tenho. É tudo igual mesmo.
 - Para efeito de registro histórico, você, primeiro, não se considera anti-militarista; segundo, não foi maltratado fisicamente durante o regime militar; e em terceiro, você disse o que quis naquele depoimento que você foi forçado a gravar quando voltou do exílio.
 - E quarto, eu tenho uma canção para o Exército Azul (Força Aérea Brasileira) 
(Geraldo Vandré começa a dar risada e mostra sua carteira de sócio da FAB)
 - ...Isso aqui é uma coisa muito bonita, sabia?
 - A canção que você compôs?
 - Não, a aviação. A maior loucura do homem é voar.
 - Em que situação Geraldo Vandré voltaria a se apresentar hoje?
 - Depende de onde. Eu tenho uma programação para gravar num país de língua espanhola. Essa é minha prioridade. Depois que fizer isso, eu vou ver minha programação para o Brasil.
 - Você declarou certa vez: 'Geraldo Vandré não existe mais'.
 - Não, eu não declarei isso. Eu disse que não canto comercialmente no Brasil, só isso.

 [O programa se encerra com a voz do jornalista declarando: "A entrevista termina assim. O grande solitário da MBP se recolhe a um quarto do hotel do Clube da Aeronáutica. Sozinho, vai em companhia do único habitante do país que ele próprio criou." Enquanto isso são mostradas imagens em slow-motion de Geraldo de costas, indo embora, subindo uma escada. O clima melancólico dá a entender que o senhor enlouqueceu, perdeu a razão e não sabe mais o que fala: a imagem perfeita para corroborar a idéia de que a esquerda é que afinal está certa nessa história.]


E a Globo é de direita...


sexta-feira, 15 de novembro de 2013

A origem do fenômeno homossexual







    Um conceito-chave para compreendermos este assunto é o da distinção entre sujeito e objeto. Sujeito é, pois, aquilo com que nos identificamos e com que podemos assim ter uma relação de orgulho ou de auto-crítica; objeto é aquilo com que não nos identificamos, mas que olhamos com distância, e com o qual podemos manter portanto uma relação de desejo ou de desprezo. Como se vê, nessa definição há um elemento muito sutil de interpretação e, logo, uma tentadora brecha para os mais perigosos equívocos — e mesmo por apontar ao que talvez seja a fonte das grandes confusões humanas, ela mesma chega a parecer confusa em si.

    Entretanto, um modo bastante eficiente de verificarmos a validade deste conceito e assim notarmos com maior nitidez os contornos que separam o sujeito do objeto — e com isso testarmos, sobretudo, a enorme diferença entre orgulhar-se por identificação e atrair-se por desejo —, está na maneira como nos relacionamos com nossos próprios impulsos sexuais. 

    O homem íntegro e saudável não tem afinidade com o universo feminino, quer dizer, com a mulher enquanto gênero sexual, pois não há aqui um elo de identificação, não se tem um elemento de orgulho suscitado na consideração do sexo feminino, e não há sequer um sentimento de auto-crítica — afinal a mulher não é o sujeito do homem. Por outro lado, o homem atrai-se pela mulher, ele a deseja e admira profundamente, pois nesse caso há sim um elo de objetivação — ora, a fêmea é o objeto, o objetivo maior do macho. 

    E estes dois sentimentos, o orgulho e o desejo, são distintos o bastante para compreendermos que se tratam de duas funções afetivas totalmente opostas, embora sejam ao mesmo tempo duas maneiras de apreciação. O homem aprecia ser o homem, e aprecia ter a mulher, porque o ‘ser’ pressupõe uma relação com o sujeito, enquanto o ‘ter’, uma relação com o objeto. Evidentemente, a recíproca, do sentimento feminino para com o homem, só pode ser verdadeira, embora, ao invés de possuir, a mulher sinta-se ainda mais feliz sendo possuída.

    Podendo isso estar um pouco mais claro, é possível entender agora o caso inverso da distinção, que é quando ocorre a confusão, e o sentimento que deveria ser orgulho vira desejo, e vice-versa. É compreensível que isso possa ocorrer porque em todo o desejar há um movimento de aproximação entre o sujeito e o objeto, e portanto há o risco de uma colisão entre os dois: o que gera a confusão, isto é, a “co-fusão”, o fundir-se conjuntamente com algo (a própria etimologia da palavra já revela esse sentido). Isso pode acontecer sobretudo se o desejo é por demais intenso, porém a noção identitária, o orgulho, por assim dizer, que mantém o sujeito a uma distância conveniente do objeto, deixa de atuar sobre ele. Nesse modo pervertido de relação, o desejo funciona como uma força atrativa desimpedida de qualquer outra força contrária, levando o sujeito e se tornar o próprio objeto desejado — e o que antes era só desejo vem a ser também orgulho e identificação, porque não há mais linhas divisoras bem definidas que separem o sujeito do objeto. 

    Essa situação, remetendo a um clássico tema místico, é como a tentativa de atravessar o espelho e se transformar no próprio reflexo, o qual de certo modo é uma inversão da essência do sujeito concreto que o contempla (como, no caso, a mulher é uma inversão do homem). É como Narciso que, vidrado em sua própria imagem, perde seu ponto de referência subjetiva, que deveria mantê-lo firme em sua posição de sujeito real; e sem o ponto de apoio necessário para manter o equilíbrio interno, se precipita nas águas de Eco, sendo tragado para uma dimensão oculta além do reflexo: o reino da morte, em contraste com o reino da vida, esse que por sua vez se acha aquém daquele espectro fantasmagórico invertido que pode ser visto no espelho fluvial — então nosso Narciso se transmuda no objeto, isto é, em seu inverso, o ser irreal, sem vida, inerte na escuridão profunda da lagoa.

    Curiosamente irônico é, também, o fato de que o fenômeno narcisístico pode se referir ao homossexualismo tanto nesse sentido de um sujeito que se torna seu oposto (o objeto), como no sentido de uma auto-obsessão do próprio sujeito/objeto. A ambivalência nesse caso, embora pareça contraditória, é apenas o resultado óbvio da perda deste senso de distinção entre sujeito e objeto. Na confusão, o sujeito verdadeiro é tão auto-anulado em favor da mistura com o objeto, quanto até mesmo o objeto, ao se misturar com o sujeito, é rejeitado em sua forma pura, singular, distinta. 

    Como conseqüência, o homossexual fica tão preso e fundido a uma natureza oposta à sua que, paradoxalmente, ele se vê incapaz inclusive de apreciá-la da maneira correta, sadia, aquela que possibilita o compartilhamento entre duas naturezas diferentes e complementares; o homossexualismo é portanto, em termos de funcionalidade sexual, a forma mais filauciosa, auto-centrada, egoísta de relacionamento amoroso, porque implica que um gênero esteja bloqueado para o outro e fechado em si, e ainda por cima numa representação alucinatória que é alheia à sua original. 

    Enfim, o Narciso é tão obcecado consigo próprio que, buscando incessantemente sua imagem, se esquece porém de que ele, enquanto ente concreto, não é essa imagem, e de que aquilo que encontrará mergulhando no reflexo da água é de fato o inverso de si mesmo: o objeto — o demônio, o fantasma, a morte — que busca sugar a essência (a alma) do indivíduo.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Homem e Mulher - Parte 2: Natureza e cultura

   
    A cultura é algo que, para os tipos mais apegados ao plano da matéria, deve lutar com todas suas forças de auto-preservação não apenas para manter-se conservada — o que, deve-se dizer, é muito legítimo —, mas para permanecer absolutamente intocada, com seus símbolos sacrossantos e seus costumes puríssimos arraigados no solo de um povo; que o digam os ultra-nacionalistas de toda espécie, de esquerda, de direita, nazi-fascistas, socialistas ou sionistas. E, não obstante o desejo desses indivíduos supersticiosos e mesquinhos, ferrenhos defensores de suas preciosas “raízes” familiares, étnicas, raciais ou religiosas, a cultura fatalmente acaba tendo de mudar para adaptar-se à implacável dinâmica da história, a qual, sem cerimônia alguma, desde sempre promove choques entre civilizações, avanços técnicos, descobertas e progressos de toda sorte. E, por outro lado, a natureza, que periodicamente percebemos variar em suas múltiplas manifestações fenomênicas, na realidade jamais muda em sua essência — pois ela já se encontra num nível supratemporal, guardada por leis eternas, imutáveis e absolutas.

    Por essa linha de raciocínio podemos traçar uma diferença essencial entre o princípio masculino, que valoriza mais a natureza — tão segura de sua eternidade quanto livre para assumir formas distintas —, e o princípio feminino, apegado mais à cultura — essa tão inflexível para as trocas de influências estrangeiras quanto desengonçada demais para resistir ereta aos constantes sopros da substância transitória. Há, contudo, em certas correntes de pensamento esquerdistas e revolucionárias, tentativas de se estabelecer uma concepção completamente invertida da realidade, que associa mulher à natureza e homem à cultura. No caso, a confusão se dá por um tipo de imagem falsificada da natureza como um ponto de contato com o sagrado feminino, e da cultura como uma expressão do poder fálico masculino.

    Na realidade, se partimos apenas do ponto de vista da natureza como um todo, vemos que a parte que se refere ao que está mais alto, isto é, ao que é mais amplo e geral, se liga ao homem, pois é ele quem tem o domínio dos céus e que prefere estar no topo das montanhas enxergando sua paisagem de modo panorâmico; e que a porção da natureza referente ao que está mais embaixo, ou seja, ao que é mais reduzido e particular, está ligada à mulher, que tem o domínio da terra e que gosta mais de ficar nas planícies, segura e atenta aos detalhes que compõem suas paisagens mais próximas.

    Portanto, se o movimento que tende a uma abertura do que nos cerca caminha no sentido de uma natureza total e plena, que é o princípio masculino, aéreo, celestial, elevado, expansivo, então aquilo que tende a um movimento inverso, que comprime nossa visão, só pode nos levar assim ao sentido de uma simples cultura, isto é, de uma realidade artificial — pois que se trata de uma mera manifestação particularizada da natureza, restrita ao que é tocado pelas mãos humanas, e já não mais estendida a uma realidade cósmica, que ergue montanhas, cria planetas e regula sistemas intergalácticos inteiros.

    Ocorre porém que, como mencionei linhas atrás, esta imagem da grande metrópole é muitas vezes apontada como um elemento preponderantemente masculino, devido a suas altas estruturas e robustas construções, que de certo modo representam um símbolo de poder fálico; enquanto isso, a mulher estaria mais voltada para a natureza, simples, gentil, delicada, maternal. Esse ponto de vista ingênuo faz sentido sobretudo se consideramos o argumento, muito utilizado por feministas e gnósticos, de que a mulher é o verdadeiro princípio da criação natural, sendo o homem, nesse quadro de interpretação, um ser estéril, relegado ao papel de artífice emulador da natureza (portanto um tipo demiúrgico e negativamente patriarcal). Mas, como já explicado no texto anterior, essa visão somente se dá por um tipo de miopia intuitiva que aparta da natureza sua dimensão transcendental, do Espírito (‘espirar’, o sopro vital) que traz do infinito o verdadeiro impulso da criação, capaz de insuflar vida na matéria — como o próprio sêmen faz em relação ao óvulo; os raios solares, em relação à superfície terrestre; o plano metafísico, em relação ao físico; e enfim, o princípio masculino (de emanação), em relação ao feminino (de recepção). O homem é, pois, o verdadeiro agente criador.

    Com isso podemos entender que a cidade, bem como a cultura de modo geral, é representada de fato pelo princípio feminino, isso se a contrastamos com o campo ou com o meio natural, que é masculino. Mas como explicar, assim, as rígidas estruturas urbanas que remetem mais àquela idéia de um símbolo fálico tornado concreto pela disposição masculina de dominar a natureza? — podem argumentar, por exemplo, os gnósticos e feministas. E a resposta é: por mais que essas estruturas tomem a forma de um falo ou de qualquer coisa robusta e masculinizada, elas nunca passarão de objetos artificiais em relação às verdadeiras estruturas da natureza, muito mais vigorosas e imponentes. Um edifício, construído ao longo de décadas, jamais terá a dimensão de uma montanha, formada naturalmente num processo milenar — será no máximo um Empire State, ou seja, um arranha-céu, nunca como um Monte Everest, que não só arranha, mas rasga e abre todo o céu a sua volta. O humano, com sua cultura tecnológica, pode levar geringonças para além do espaço estratosférico e até alcançar alguns de nossos planetas vizinhos, mas a natureza já tem seus cometas vagando por toda a imensidão do cosmo — ora, a natureza já tem os próprios planetas, estrelas e galáxias. Como se vê, trata-se de uma comparação bastante injusta, porque é o artificial contra o natural.

    E se a afirmação de que a cidade (ou cultura) é representada pelo homem apóia-se sobre esta analogia entre a forma fálica das construções urbanas e um certo caráter masculino — no que inclusive se confessa que a imponência e a rigidez formam realmente um caráter masculino —, então nada mais justo do que considerar que as estruturas naturais, como as montanhas e as enormes formações rochosas em geral (que também são fálicas e ainda mais rígidas e imponentes que qualquer engenharia humana), são assim mais masculinas do que femininas, de modo que, seguindo esse mesmo raciocínio, o homem acaba por tender à natureza muito mais do que a mulher. 

    Por fim, a correlação mulher/natureza só funciona se trabalhamos com um sentido muito peculiar de natureza, relacionado a um tipo de ambiente fechado, obscuro e misterioso: densas florestas, matas selvagens e cavernas sombrias, portanto locais onde se acharia, conforme a crença gnóstica, o tal sagrado feminino. No entanto, não só esses ambientes constituem uma mera faceta da natureza, e aliás a mais particularizada e restrita, como é possível, também, traçar um paralelo entre essa mesma disposição feminina ao mistério enclausurado (como tipicamente simbolizado em deusas, desde as babilônicas até as ‘prostitutas sagradas’ do paganismo) e certos aspectos muito comuns e representativos da própria cidade: a reclusão em estabelecimentos fechados, os pubs quentes e festivos, a noite agitada e caótica, e enfim, o constante clima de emparedamento cavernoso e orgiástico típico da tradição dionisíaca.


    E, a propósito, a natureza, em seu sentido maior e integral, é contemplada de forma muito mais abrangente nesta imagem de um horizonte livre, aberto, de grande amplitude, desimpedido de edifícios, torres e muralhas, ou mesmo de copas fechadas, grutas claustrofóbicas e montes que cercam apenas os que se situam fixos nos vales e planícies. A natureza tanto cresce quanto aumentam os espaços, as alturas, e tudo que segue se elevando aos altos cumes, à visão larga, aos céus, ao infinito. É sobre as montanhas, é entre as estrelas, é nas nuvens e no sol que vemos a real natureza, portanto é no homem que o natural também se expressa com maior ênfase.