A cultura é algo que, para os tipos mais apegados ao plano da matéria, deve lutar com todas suas forças de auto-preservação não apenas para manter-se conservada — o que, deve-se dizer, é muito legítimo —, mas para permanecer absolutamente intocada, com seus símbolos sacrossantos e seus costumes puríssimos arraigados no solo de um povo; que o digam os ultra-nacionalistas de toda espécie, de esquerda, de direita, nazi-fascistas, socialistas ou sionistas. E, não obstante o desejo desses indivíduos supersticiosos e mesquinhos, ferrenhos defensores de suas preciosas “raízes” familiares, étnicas, raciais ou religiosas, a cultura fatalmente acaba tendo de mudar para adaptar-se à implacável dinâmica da história, a qual, sem cerimônia alguma, desde sempre promove choques entre civilizações, avanços técnicos, descobertas e progressos de toda sorte. E, por outro lado, a natureza, que periodicamente percebemos variar em suas múltiplas manifestações fenomênicas, na realidade jamais muda em sua essência — pois ela já se encontra num nível supratemporal, guardada por leis eternas, imutáveis e absolutas.
Por essa linha de raciocínio podemos traçar uma diferença essencial entre o princípio masculino, que valoriza mais a natureza — tão segura de sua eternidade quanto livre para assumir formas distintas —, e o princípio feminino, apegado mais à cultura — essa tão inflexível para as trocas de influências estrangeiras quanto desengonçada demais para resistir ereta aos constantes sopros da substância transitória. Há, contudo, em certas correntes de pensamento esquerdistas e revolucionárias, tentativas de se estabelecer uma concepção completamente invertida da realidade, que associa mulher à natureza e homem à cultura. No caso, a confusão se dá por um tipo de imagem falsificada da natureza como um ponto de contato com o sagrado feminino, e da cultura como uma expressão do poder fálico masculino.
Na realidade, se partimos apenas do ponto de vista da natureza como um todo, vemos que a parte que se refere ao que está mais alto, isto é, ao que é mais amplo e geral, se liga ao homem, pois é ele quem tem o domínio dos céus e que prefere estar no topo das montanhas enxergando sua paisagem de modo panorâmico; e que a porção da natureza referente ao que está mais embaixo, ou seja, ao que é mais reduzido e particular, está ligada à mulher, que tem o domínio da terra e que gosta mais de ficar nas planícies, segura e atenta aos detalhes que compõem suas paisagens mais próximas.
Portanto, se o movimento que tende a uma abertura do que nos cerca caminha no sentido de uma natureza total e plena, que é o princípio masculino, aéreo, celestial, elevado, expansivo, então aquilo que tende a um movimento inverso, que comprime nossa visão, só pode nos levar assim ao sentido de uma simples cultura, isto é, de uma realidade artificial — pois que se trata de uma mera manifestação particularizada da natureza, restrita ao que é tocado pelas mãos humanas, e já não mais estendida a uma realidade cósmica, que ergue montanhas, cria planetas e regula sistemas intergalácticos inteiros.
Ocorre porém que, como mencionei linhas atrás, esta imagem da grande metrópole é muitas vezes apontada como um elemento preponderantemente masculino, devido a suas altas estruturas e robustas construções, que de certo modo representam um símbolo de poder fálico; enquanto isso, a mulher estaria mais voltada para a natureza, simples, gentil, delicada, maternal. Esse ponto de vista ingênuo faz sentido sobretudo se consideramos o argumento, muito utilizado por feministas e gnósticos, de que a mulher é o verdadeiro princípio da criação natural, sendo o homem, nesse quadro de interpretação, um ser estéril, relegado ao papel de artífice emulador da natureza (portanto um tipo demiúrgico e negativamente patriarcal). Mas, como já explicado no texto anterior, essa visão somente se dá por um tipo de miopia intuitiva que aparta da natureza sua dimensão transcendental, do Espírito (‘espirar’, o sopro vital) que traz do infinito o verdadeiro impulso da criação, capaz de insuflar vida na matéria — como o próprio sêmen faz em relação ao óvulo; os raios solares, em relação à superfície terrestre; o plano metafísico, em relação ao físico; e enfim, o princípio masculino (de emanação), em relação ao feminino (de recepção). O homem é, pois, o verdadeiro agente criador.
Com isso podemos entender que a cidade, bem como a cultura de modo geral, é representada de fato pelo princípio feminino, isso se a contrastamos com o campo ou com o meio natural, que é masculino. Mas como explicar, assim, as rígidas estruturas urbanas que remetem mais àquela idéia de um símbolo fálico tornado concreto pela disposição masculina de dominar a natureza? — podem argumentar, por exemplo, os gnósticos e feministas. E a resposta é: por mais que essas estruturas tomem a forma de um falo ou de qualquer coisa robusta e masculinizada, elas nunca passarão de objetos artificiais em relação às verdadeiras estruturas da natureza, muito mais vigorosas e imponentes. Um edifício, construído ao longo de décadas, jamais terá a dimensão de uma montanha, formada naturalmente num processo milenar — será no máximo um Empire State, ou seja, um arranha-céu, nunca como um Monte Everest, que não só arranha, mas rasga e abre todo o céu a sua volta. O humano, com sua cultura tecnológica, pode levar geringonças para além do espaço estratosférico e até alcançar alguns de nossos planetas vizinhos, mas a natureza já tem seus cometas vagando por toda a imensidão do cosmo — ora, a natureza já tem os próprios planetas, estrelas e galáxias. Como se vê, trata-se de uma comparação bastante injusta, porque é o artificial contra o natural.
E se a afirmação de que a cidade (ou cultura) é representada pelo homem apóia-se sobre esta analogia entre a forma fálica das construções urbanas e um certo caráter masculino — no que inclusive se confessa que a imponência e a rigidez formam realmente um caráter masculino —, então nada mais justo do que considerar que as estruturas naturais, como as montanhas e as enormes formações rochosas em geral (que também são fálicas e ainda mais rígidas e imponentes que qualquer engenharia humana), são assim mais masculinas do que femininas, de modo que, seguindo esse mesmo raciocínio, o homem acaba por tender à natureza muito mais do que a mulher.
Por fim, a correlação mulher/natureza só funciona se trabalhamos com um sentido muito peculiar de natureza, relacionado a um tipo de ambiente fechado, obscuro e misterioso: densas florestas, matas selvagens e cavernas sombrias, portanto locais onde se acharia, conforme a crença gnóstica, o tal sagrado feminino. No entanto, não só esses ambientes constituem uma mera faceta da natureza, e aliás a mais particularizada e restrita, como é possível, também, traçar um paralelo entre essa mesma disposição feminina ao mistério enclausurado (como tipicamente simbolizado em deusas, desde as babilônicas até as ‘prostitutas sagradas’ do paganismo) e certos aspectos muito comuns e representativos da própria cidade: a reclusão em estabelecimentos fechados, os pubs quentes e festivos, a noite agitada e caótica, e enfim, o constante clima de emparedamento cavernoso e orgiástico típico da tradição dionisíaca.
E, a propósito, a natureza, em seu sentido maior e integral, é contemplada de forma muito mais abrangente nesta imagem de um horizonte livre, aberto, de grande amplitude, desimpedido de edifícios, torres e muralhas, ou mesmo de copas fechadas, grutas claustrofóbicas e montes que cercam apenas os que se situam fixos nos vales e planícies. A natureza tanto cresce quanto aumentam os espaços, as alturas, e tudo que segue se elevando aos altos cumes, à visão larga, aos céus, ao infinito. É sobre as montanhas, é entre as estrelas, é nas nuvens e no sol que vemos a real natureza, portanto é no homem que o natural também se expressa com maior ênfase.
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