quarta-feira, 30 de setembro de 2015

A falsidade do jazz

   Ninguém gosta realmente de jazz. Diz-se gostar apenas para parecer cool e se sentir pertencido a uma galera, a uma panelinha descolada.

   Primeiro que jazz é coisa de quem enxerga a música como um mero objeto decorativo. O tipo põe lá para tocar na sua sala um disco do Coltrane só porque isso confere ao ambiente um certo clima, que combina com o seu abajur, com suas cortinas coloridas, com seu sofá listrado, com seus pôsteres de filmes franceses.

   Tudo bem, existem de fato aqueles 2% de fãs genuínos que conhecem a fundo as idiossincrasias sonoras do jazz, e que de algum modo parecem até catalogá-las como figuras esquemáticas de uma apreciação puramente técnica. Contudo, não se pode negar que adquirir um conhecimento especializado dessa natureza equivale a manter como hobby uma coleção de piolhos taxidermizados das mais variadas espécies das Filipinas. Quer dizer, ninguém realmente aprecia o jazz como música — pois dificilmente isso pode ser entendido como música. É mais como um banco de dados de inflexões sonoras, que poderiam ser, indiferentemente, variações de uma bexiga esvaziando ou de uma porta rangendo. E para a maioria dos “manjadores”, ouvir essas frivolidades ruidosas não é mais que um fetiche bobo, como preparar café expresso ou expor bonequinhos de acrílico numa estante.

   Ora, eu consigo cantarolar, por exemplo, a nona sinfonia de Beethoven inteira, os quatro movimentos, praticamente todas as linhas de quase todos os instrumentos — e isso por ter ouvido tantas vezes essa obra máxima da humanidade que ela já se entranhou nos meus nervos, tomando suavemente os espaços entre as sinapses do meu cérebro, como peças que se acomodam perfeitamente em seus devidos encaixes de origem (refiro-me ao maravilhoso senso de harmonia com o qual já nascemos gravado em nossa constituição física e espiritual). Agora eu quero saber quem pode dizer o mesmo de uma porcaria nonsense como Bitches Brew, mesmo tendo posto aquilo milhares de vezes para escutar. Eu mesmo só faria algo assim se me propusessem como um desafio no Caldeirão do Huck, valendo trinta mil em dinheiro — aí, quem sabe, eu decorasse as, digamos, “linhas melódicas” desse treco murmuroso, o que seria, em si, um feito bastante despropositado.

   A verdade é que ninguém dá a mínima para o jazz enquanto uma espécie de som para realmente se ouvir e apreciar, prestando atenção em cada nota, percebendo o valor exclusivo de cada nuance, dentro de um contexto maior em que todos os detalhes se fazem essenciais à obra, e cuja alteração de um só deles acabaria por prejudicar o todo. Pois o jazz é, antes de mais nada, uma simples textura sonora, plácida e indiferente em toda sua extensão, que está lá apenas para atender ao senso estético raso de uns afrescalhados fetichistas, que a absorvem pela periferia de seus inábeis e ludibriados sentidos. Quer dizer, as pessoas se preocupam mesmo é com uma maneira de transformar tal gênero desagradável num artigo de luxo, para comercializar boxes caríssimos de CDs e biografias de tipos que gostam de franzir a testa em poses líricas com seus trompetes, em fotografias monocromáticas. Jazz serve tão-somente para isto: para o sujeito se sentir de alguma forma inserido neste rol de pessoas muito bacanas, sensíveis e iluminadas; para se sentir um pouco mais por dentro do que seria — supõe ele — a “alta cultura”; e coisas assim, de uma auto-eleição grupal bajulatória e infame. É um mercado, um plano virtual, abstrato, altamente aburguesado, aquecido pelo desejo inseguro de se atingir um status de elegância numa sociedade blasé, através do consumo de produtos “refinados” e bem embrulhados para figurarem numa prateleira. Como música mesmo, como arte, como sentimento real, livre e honesto que deveria ser, o jazz não é nada, não tem qualquer valor. É mais como um chapéu em forma musicada, algo para combinar com as calças verdes de bolinhas roxas.

   Mas o pior no jazz são os solos. Numa música de verdade você percebe que os solos fluem naturalmente, mantendo uma seqüência harmônica de notas, isto é, uma linha melódica coerente, em que cada passagem confirma a anterior e antecipa a próxima. No jazz, porém, os solos são despejados aos poucos, como vômitos engasgados expelidos numa privada. Arrghhaarghddughlaghahhh.... então há uma pequena pausa (enquanto a base continua) e o solista toma fôlego para despejar mais alguns fraseados que pouca ou nenhuma ligação tem com o anterior. Uuuuurrghaaashhhlaghlaghaagruuuhr.... e lá se foi mais uma vomitada de notas dissonantes, quebradas, imprevisivelmente previsíveis. Mas espere que ainda virá mais algumas gorfadas arrítmicas — o sujeito parece estar realmente mal.

   A essa altura, um argumento que me lançariam é o de que o jazz é simplesmente ousado demais para a minha pobre mente limitada, oh sim, que o jazz é muito desafiador, que ele carrega uma lógica muito difícil, árdua, inacessível... e que o problema estaria apenas em mim, com a minha cabeça muito quadrada para absorver o incrível impacto alucinante dessa imensa loucura que é o jazz. Aham, logo eu, que estou acostumado a ouvir as peças mais intrincadas e agressivas do King Crimson, como a Larks' Tongues in Aspic, Parte I; ou improvisações endiabradas na guitarra, como a que o Jimi Hendrix executa em sua famosa performance em Woodstock; ou a estupefaciente introdução de Close to the Edge, do grupo progressivo Yes; ou os solos freaks da obscura banda fusion Viola Crayola. — Todos exemplos dos quais nenhum detalhe me escapa aos ouvidos, e que eu posso acompanhar e reproduzir integralmente na minha cabeça, nota por nota, cada vibrato, cada virada de tambor, cada mínimo deslizar de dedos pelo braço do instrumento.

   Não, sem chance, este jamais seria o motivo. Pois não é que eu ache o jazz desafiador, ousado, difícil, insano, incompreensível, bizarro, ou coisa parecida. Muito pelo contrário: eu só acho óbvio, brochante, inofensivo, vago, oco, sem forma, sem cor, sem consistência, sem potência e sem fluência. Não transmite vontade, paixão, graça, sentimento, harmonia, caos, vida, morte, porra nenhuma — pois ali sequer existe uma linha firme e coesa o suficiente para dar sustentação a esses elementos. E se há uma definição de música que eu considero das mais interessantes, é a que foi certa vez proferida pelo sábio Zé Graça (o locutor de vídeos de cassetadas do youtube): a música não pode te deixar com a biluga murcha, ela tem que te deixar com a biluga rrrrrija!



   E o jazz te deixa com a biluga murcha, com o saco tombado, com os pentelhos contraídos e com as bolas desminliguidas. Que esse gênero fique então para os que já possuem naturalmente um pendor para esses traços de impotência.



 






                             

                                   




                                      

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