segunda-feira, 18 de maio de 2020

A marcha para nos travar





Em 2012, a pandemia que o mundo já havia esperado por anos finalmente aconteceu. Diferentemente da H1N1 de 2009, essa nova cepa de gripe - originária de gansos selvagens - era extremamente agressiva e fatal. Mesmo as nações mais preparadas para situações pandêmicas foram rapidamente dominadas quando o vírus se espalhou pelo mundo, infectando aproxidamente 20% da população global e matando 8 milhões em apenas 7 meses, a maioria dos quais adultos jovens e saudáveis.

A pandemia também teve um efeito letal nas economias: o transporte internacional, tanto de bens quanto de pessoas, sofreu uma paralisação brusca, prejudicando setores da indústria, como o turismo, e quebrando cadeias globais de suprimentos. Mesmo em escala local, áreas geralmente movimentadas do comércio e prédios de escritórios permaneceram vazios por meses, desprovidos tanto de clientes quanto de funcionários.

A pandemia cobriu o planeta - embora números desproporcionais de mortes tenham ocorrido na África, no sudeste da Ásia e na América Central, onde o vírus se espalhou como fogo devido à falta de protocolos oficiais de contenção. Porém mesmo nos países desenvolvidos, a contenção foi um desafio. A política inicial adotada pelos EUA de "desencorajar fortemente" os cidadãos de pegarem vôos se provou mortalmente ineficaz pela sua leniência, acelerando a disseminação do vírus não apenas dentro do território americano mas através das fronteiras.

Entretanto, alguns países se saíram melhor - a China em particular. A rápida imposição e aplicação, por parte do governo chinês, de quarentena obrigatória para todos os cidadãos, assim como o bloqueio instantâneo e quase total de todas suas fronteiras, salvou milhões de vidas, dando fim à propagação do vírus muito mais cedo que em outros países, e permitindo uma mais rápida recuperação pós-pandemia.

O governo da China não foi o único que tomou medidas extremas para proteger seus cidadãos contra riscos e exposições. Durante a pandemia, líderes ao redor do mundo enrijeceram suas autoridades e impuseram regras e restrições herméticas, desde o uso obrigatório de máscaras de proteção até a verificação de temperatura corporal nas entradas de espaços públicos, como estações de metrô e supermercados. Mesmo depois que a pandemia acabou, tal vigilância e controle mais autoritários dos cidadãos e de suas atividades foram mantidos, e até mesmo se intensificaram.

Com o fim de se proteger da multiplicação de problemas cada vez mais globais - desde pandemias e terrorismo transnacional até crises ambientais e aumento da pobreza -, líderes ao redor do mundo firmaram com mais força sua posição no poder.

A princípio, a noção de um mundo mais controlado ganhou ampla aceitação e aprovação. Cidadãos voluntariamente abriram mão de suas autonomias - e de suas privacidades - em favor de Estados mais paternalistas, em troca de mais segurança e estabilidade. Cidadãos passaram a tolerar mais, e até desejar, um controle e direcionamento de cima para baixo, e líderes de nações tiveram mais liberdade para impor ordens da maneira como achavam melhor.

Nos países desenvolvidos, esse aumento da vigilância assumiu diversas formas: por exemplo, a identificação biométrica para todos os cidadãos, e regulamentações mais rígidas sobre os principais setores da indústria cuja estabilidade foi considerada vital para os interesses nacionais. Em muitos países desenvolvidos, planos de cooperação, impostos com um conjunto de novos regulamentos e acordos, restauraram, de forma lenta porém firme, a ordem e, mais importante, o crescimento econômico.

Nos países em desenvolvimento, no entanto, a história foi diferente - e muito mais variada. Autoridades assumiram formas diferentes em cada país, a depender largamente da capacidade, da disposição e das intenções de seus líderes. Em países com líderes fortes e ponderados, a situação econômica geral dos cidadãos, bem como a qualidade de vida, aumentaram. Na Índia, por exemplo, a qualidade do ar melhorou drasticamente a partir de 2016, quando o governo proibiu veículos muito poluentes. Em Gana, a introdução de programas governamentais ambiciosos para melhorar a infra-estrutura básica e garantir a viabilidade de água limpa para todo o seu povo levou a um declínio das doenças transmitidas pela água.

Contudo, lideranças mais autoritárias tiveram um desempenho pior - e, em alguns casos, trágico - em países governados por elites irresponsáveis que usaram seu aumento de poder para buscar seus próprios interesses, às custas de seus cidadãos.

Houve outras desvantagens, como o crescimento de um agressivo nacionalismo, que criou novos perigos: por exemplo, expectadores da Copa do Mundo de 2018 usavam coletes à prova de bala que exibiam uma estampa de suas bandeiras nacionais. Rígidas regulamentações sobre a tecnologia sufocou a inovação, manteve os custos altos e inibiu sua adoção.

Nos países em desenvolvimento, o acesso à tecnologia "aprovada" aumentou, mas para além disso permaneceu limitado: o epicentro de inovação tecnológica estava amplamente no mundo desenvolvido, deixando muitos países em desenvolvimento na extremidade receptora das tecnologias que outros entendiam que eram "melhores" para eles. Alguns governos tomaram isso como uma atitude paternalista e se recusaram a distribuir computadores e outras tecnologias que eles classificaram, em tom de zombaria, como de "segunda mão".

Nesse meio tempo, países em desenvolvimento com mais recursos e maiores capacidades começaram a inovar internamente a fim de preencher essa lacuna por conta própria. Enquanto isso, no mundo desenvolvido, a presença de tantas regras e normas impostas de cima para baixo inibia bastante a atividade empreendedora. Cientistas e inovadores eram freqüentemente informados pelo governo sobre quais linhas de pesquisa deveriam seguir e eram guiados principalmente na direção de projetos que gerariam lucro (por exemplo, o desenvolvimento de produtos orientados pelo mercado) ou que fossem "apostas seguras" (por exemplo, pesquisa de base), deixando áreas de pesquisa mais arriscadas e inovadoras em grande medida inexploradas.

Países ricos e empresas monopolistas que contavam com grandes orçamentos de pesquisa e desenvolvimento ainda realizaram avanços significativos, mas a PI por trás de suas descobertas permaneceu trancada sob rígida proteção nacional e corporativa. A Índia e a Rússia impuseram rígidos padrões domésticos para supervisionar e certificar os produtos relacionados à criptografia e seus fornecedores - uma categoria que, na realidade, significava todas as inovações de TI. Os EUA e a União Européia reagiram com seus padrões nacionais em retaliação, impossibilitando o desenvolvimento e a difusão da tecnologia globalmente.

Especialmente nos países em desenvolvimento, agir nos próprios interesses nacionais significava, com freqüência, buscar alianças práticas que se harmonizavam com esses interesses - fosse isso ganhar acesso a recursos necessários ou estabelecer uma união de modo a atingir o crescimento econômico.

Na América do Sul e na África, alianças regionais e sub-regionais tornaram-se mais estruturadas. O Quênia dobrou seu comércio no sul e no leste da África, ao passo em que novas parcerias cresceram dentro do continente. O investimento da China na África expandiu à medida em que a oferta de novos empregos e infra-estrutura em troca de acesso a minerais estratégicos e exportação de alimentos provou-se satisfatório a diversos governos.

Laços transnacionais proliferaram na forma de ajuda oficial de segurança. Enquanto a expansão de equipes de segurança estrangeiras foi bem-vinda em alguns dos estados mais severamente falidos, soluções de "tamanho único" trouxeram poucos resultados positivos.

Em 2025, as pessoas pareciam estar se cansando de tanto controle de cima para baixo e de deixar com que líderes e autoridades fizessem as escolhas por elas. Onde quer que os interesses nacionais se chocassem com os interesses individuais, havia conflito. Reações esporádicas tornaram-se cada vez mais organizadas e coordenadas à medida em que jovens e pessoas descontentes que viram seu status e oportunidades irem embora - a maioria em países em desenvolvimento - incitavam a agitação civil. Em 2026, protestos na Nigéria derrubaram o governo, fartas que as pessoas estavam da corrupção e do fisiologismo encrustados.

Mesmo aqueles que gostavam da maior estabilidade e previsibilidade deste mundo começaram a ficar cada vez mais desconfortáveis e limitados por tantas regras rígidas e pela estreiteza das fronteiras nacionais. Persistia o sentimento de que, mais cedo ou mais tarde, alguma coisa inevitavelmente iria perturbar a ordem pura que os governos do mundo haviam trabalhado duro para estabelecer.




TECNOLOGIA neste cenário

Embora não haja forma de prever com precisão quais importantes avanços tecnológicos veremos no futuro, a narrativa desse cenário aponta para áreas em que as condições talvez permitam ou acelerem o desenvolvimento de certos tipos de tecnologia. Assim, para cada tipo de cenário, oferecemos uma noção do contexto da inovação tecnológica, levando em consideração o ritmo, a geografia e os principais criadores. Também sugerimos algumas tendências e aplicações tecnológicas que poderiam florescer em cada cenário.

A inovação tecnológica no cenário deste capítulo é amplamente impulsionada pelo governo e focada em questões de segurança nacional. Grande parte das melhorias tecnológicas é criada por e para os países desenvolvidos, moldada pelos governos em seu duplo desejo de controlar e monitorar seus cidadãos. Em Estados com governança precária, abundam os projetos de larga-escala que não progridem. Tendências e aplicações tecnológicas que talvez veremos:

- Scanners usando tecnologias avançadas de imagens de ressonância magnética funcional tornam-se a norma em aeroportos e outras áreas públicas a fim de detectar comportamentos desviantes que talvez indiquem "intenção anti-social".

- Após o susto da pandemia, embalagens mais inteligentes para alimentos e bebidas são aplicadas, primeiro por grandes empresas e produtores em um ambiente industrial e, em seguida, adotadas para produtos e consumidores individuais.

- Novos diagnósticos são desenvolvidos para detectar doenças transmissíveis. A aplicação da triagem de saúde também muda, tornando-se pré-requisito para a liberação em hospitais ou presídios, diminuindo com êxito a proliferação de muitas doenças.

- Tecnologias de tele-presença respondem à demanda por sofisticados sistemas de comunicação com preços mais baratos e larguras de banda menores, para populações cuja possibilidade de viajar é restrito.

- Impulsionados pelo protecionismo e pelas preocupações de segurança nacional, as nações criam suas próprias redes de TI independentes e definidas regionalmente, imitando a rede de proteção da China. Governos possuem variados graus de sucesso no policiamento do tráfego da internet, mas esses esforços, no entanto, fraturam a grande rede mundial.





SOBRE O AUTOR

Peter Schwartz é um futurólogo, autor e co-fundador da Global Business Network (GBN), uma empresa de estratégia corporativa, especializada em pensar o futuro e planejar cenários. Em outubro de 2011, ele atuou como vice-presidente sênior de planejamento estratégico da Salesforce.com, com sede em San Francisco, Califórnia.

Schwartz é mais conhecido como o principal autor do desacreditado relatório do Pentágono sobre Mudanças Climáticas de 2004, o qual alertava que cidades européias estariam submersas e a Grã-Bretanha seria um deserto gelado como a Sibéria no ano de 2020.

Em 2010, Schwartz e sua empresa GBN produziram o texto "Cenários para o Futuro da Tecnologia e o Desenvolvimento Internacional", publicado pela Fundação Rockefeller, contendo cenários detalhados para criar tanto mudanças positivas quanto violência política massiva, os quais se apresentam como estratégias de desenvolvimento internacional para o futuro. Um dos cenários possui o título "Lock Step", o qual descreve uma pandemia mundial que leva ao colapso econômico internacional e a controles autoritários opressores.

Peter Schwartz é filho de dois judeus que não foram exterminados no "Holocausto".

(Fonte: Wikipédia)

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