quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Entrevista de Geraldo Vandré para a Globo News (parcial e comentada por mim em azul)

Entrevista de Geraldo Vandré para o jornalista Geneton Moraes Neto, no programa 'Dossiê' do canal Globo News, dia 12 de setembro de 2010. Essa é a primeira vez que Geraldo se manifesta em público depois de 37 anos.

 - O que aconteceu com Geraldo Vadré?
 - Ficou fora dos acontecimentos (risos). Quando, na juventude, terminei meu curso de Direito no Rio de Janeiro e fui me dedicar a uma carreira artística, já sabia que arte era cultura inútil. Mas, tempos depois, consegui me tornar mais inútil do que qualquer artista, porque hoje sou advogado num tempo sem lei. Quer coisa mais inútil que isso?
 - O fato de sua música 'Caminhando' ter se tornado uma espécie de hino de protesto provoca o que em você, hoje? Orgulho ou irritação?
 - Não tenho nada que corrigir do meu passado. Mas não concordo com essa denominação 'música de protesto'. Protesto é coisa de quem não tem poder. Eu não fazia protesto, eu fazia canções brasileiras.
 - Você teve uma divergência artística com os tropicalistas, entre eles Caetano Veloso e Gilberto Gil. Hoje, você ainda considera ruim a música que eles faziam na época?
 - Para essa pergunta, eu me lembro da resposta do próprio Gil, que uma vez me disse que fazia qualquer coisa e uma tinha que dar certo. (muda para um semblante mais sério) Eu não faço qualquer coisa.
 - Mas você mudou de opinião sobre os tropicalistas?
 - Parece que eles continuam na mesma.
 - Em que país vive Geraldo Vandré?
 - No Brasil que não está aqui. Ou melhor, Geraldo vive no Brasil, e até me atreveria a dizer que quem não vive no Brasil é a quase totalidade dos brasileiros.
 - Como é esse Brasil de Geraldo Vandré?
 - É o de antes, de quarenta anos atrás, quando não existia esse processo de massificação.
 - O Brasil de quarenta anos atrás era melhor do que o de hoje?
 - Olha, eu fazia música para aquele país.
 - E por que não fazer música para o Brasil de hoje?
 - Porque o que existe atualmente, como lhe falei, é cultura de massa, não é cultura artística brasileira. Para essa não há mais espaço.
 - Você se considera então uma espécie de exilado que vive dentro do Brasil?
 - É, eu me afastei das minhas atividades até 68 e não retornei a elas.
 - Você diria que o Brasil é um país ingrato?
 - Não, de forma alguma. Guerra é guerra. E eu não perdi (risos). Tem um poema do Gonçalves Dias, que eu lembro que meu pai me dizia, que é assim: 'Não chores, meu filho. Não chores que viver é lutar. A vida, meu filho, é combate, é luta renhida, que os fracos abate, e os fortes e bravos só pode exaltar.'
 - Quando você se lembra do maracanãzinho inteiro cantando 'Caminhando', que sentimento você tem?
 - Aquilo foi muito bonito. Pena que eu não possa ver o VT. Estão guardando e eu não sei pra quê. Eu quero ver. Está lá na estação, procure lá. (rindo e olhando para a câmera) Consegue o VT aí pra mim. Tem o Tom Jobim lá, é o mesmo VT. Sumiram com a minha parte. Por quê? 

 [Um aviso surge na tela: 'As imagens da participação de Vandré no Festival Internacional da Canção de 1968 não foram localizadas. Restou o áudio'. A fita é tocada e se pode ouvir a vaia do público ao jurado que premiara Chico Buarque e Tom Jobim, enquanto a maioria queria que o prêmio fosse para a música 'Caminhando'. Então se ouve a intromissão de Geraldo Vandré dizendo ao microfone para a platéia: "Gente, por favor. Antônio Carlos Jobim e Chico Buarque de Hollanda merecem nosso respeito. A nossa função é fazer canções. A função de julgar, nesse instante, é do júri que ali está. Tem mais uma coisa só. A vida não se resume em festivais."]

 - Você tem saudade daquela época?
 - Saudades... (em tom de reflexão). É, um pouco, mas também tem tanta coisa pra fazer que não dá muito tempo de sentir saudades.
 - Você vive do que hoje? Recebe direitos autorais?
 - Não, nunca dependi de música para viver. Eu sou servidor público federal e hoje estou aposentado. Sobre os direitos autorais, eles pagam o que querem, e não existe controle ou critério sobre isso. Se nós tivéssemos direito de autor, nós teríamos os direitos conexos, os direitos de marcas, patentes, propriedade industrial, essas coisas todas. Mas aí nós não seríamos subdesenvolvidos, né? Esse assunto é muito complexo.
 - Se você fosse escrever um verbete no dicionário sobre o Geraldo Vandré, qual seria a primeira frase?
 - Criminoso (risada). Isso que você chama de governo, ou o que se apresenta como governo até hoje, me tem como anistiado. E anistia é para criminoso.
 - Você teria cometido o delito de opinião?
 - Não, eu acho que era subversão mesmo. (...) Mas as Forças Armadas propriamente ditas entenderam muito melhor do que a sociedade civil. Nunca tive problemas com as Forças Armadas. Sempre houve uma consideração e respeito entre nós.
 - Logo após voltar do exílio, por que você resolveu se afastar totalmente da carreira artística? Você foi maltratado fisicamente aqui?
 - Não existe nesse país que está aí um público...
 - (repórter interrompendo) Não, na época...
 - Já era assim, essa época ao qual você se refere já é o hoje que estou falando. Já era como está agora. Quando voltei do exílio, o Brasil já estava assim, num processo de massificação. O público para quem eu havia escrito e composto quatro anos e meio antes já não existia mais. E isso foi de mal a pior. (...) Pra você ter uma idéia, quando me mudei pra São Paulo em 1961, a cidade tinha 4 milhões de habitantes, hoje são 16 milhões de amontoados. Isso é um genocídio.
 - Quer dizer, a decisão de interromper a carreira então foi de certa forma um protesto contra o que você via como a massificação da sociedade brasileira?
 - Não, não! Foi por uma falta de motivo, uma falta de razão, falta de porquê. Protesto não.
 - Um outro grande nome que se celebrizou como opositor do regime militar na música brasileira foi Chico Buarque de Hollanda. Você acompanhou o que ele fez depois?
 - O Chico teve um caminho diferente do meu. Ele não chegou a parar, ele continuou produzindo muito. Eu estava fora. Quando retornei, fiz uma tentativa de apresentação num programa de televisão que não vem ao caso qual. Não gostei do que aconteceu ali, o jogo de pressões que havia. Eu recuei. E depois passou-se um tempo, aí a própria Globo queria fazer um festival e chegaram a me procurar. Mas eu não tinha interesse de participar.
 - Mas você acompanhou a produção de Chico Buarque de Hollanda? O que ela significa pra você?
 - Acho que ele é uma pessoa muito talentosa, uma pessoa muito importante, né? Um grande artista.
 - Você perdeu contato com todos os seus companheiros de geração na música?
 - Eu nunca fui muito enfronhado no meio artístico. Eu fazia minhas coisas e voltava para minhas atividades extra-musicais.
 - O fato de você ter composto uma música em homenagem às Forças Aéreas criou um certo espanto. Hoje você se hospeda em hotéis da Aeronáutica como este aqui. Nós estamos em um ambiente militar. Em que momento houve essa mudança?
 - Esse é relativamente um ambiente militar, quer dizer, isso aqui é um instituto de direito privado, né? Não houve mudança na minha postura. O que teve foi um reconhecimento de uma parte da sociedade (se referindo aos militares) que nunca tinha tido oportunidade de saber realmente quais eram minhas posições.
 - Hoje você nega que tenha sido em algum momento anti-militarista.
 - Nunca fui anti-militarista. Eu falei o que achava que tinha que dizer numa canção que foi cantada no Brasil para todo mundo, inclusive para os soldados.
 - O grande equívoco sobre Geraldo Vandré foi este de achar que você é anti-militarista?
 - Olha... eu acho que na realidade não houve um grande equívoco. Houve uma grande manipulação. Porque quanto mais proibido, mais sucesso fazia, mais se vendia, e menos conta se prestava. Essa é uma questão muito séria.
 - Você foi constrangido a gravar, em 1973, um depoimento em que negava que fosse um militante político. Qual foi o peso deste depoimento na decisão de interromper a carreira?
 - Eu nunca fui constrangido a declarar que não tive militância política, porque eu nunca tive militância política partidária. Eu nunca pertenci a nenhum partido e nunca fui um político profissional. (...) Eu me lembro de um professor de filosofia que dizia que o homem é um animal político (...) Então vamos estudar a diferença entre política (no sentido amplo) e eleição (política no sentido estrito, partidário)?
 - Que recordação você guarda desse depoimento? Você foi levado para uma sala do Aeroporto de Brasília e gravou um depoimento em que, de certa maneira, renegava... Você queria esclarecer esse assunto?
 - Eu não me lembro exatamente. Eu gostaria de ver a declaração... porque houve montagem. Era gravação e o que foi para o ar eu não sei.
 - Mas é que esse depoimento causou um espanto na época, porque era você negando a militância política.
 - Eu nunca fui um militante político.
 - Então negando o engajamento político.
 - Se engajamento político é pertencer a um partido, eu nunca fui engajado politicamente.
 - Mas você foi obrigado a gravar esse depoimento. Ou pelo menos fazia parte do acordo para voltar para o Brasil
 - Não, eles queriam que eu desse uma declaração e que dissesse... olha, eu não sei, eu não me lembro... eu disse algumas coisas lá que eu achei que podia dizer, e o que disse era verdade. Não disse nada que eu não tenha querido dizer.

 [O ponto de vista do entrevistador insiste na idéia de que Geraldo Vandré teria sido brutalmente violado pelos militares em seu direito civil de ir e vir em paz, sem a necessidade de dar qualquer satisfação ao governo brasileiro, mesmo em um momento conturbado no qual a direita e a esquerda digladiavam pelo poder, a primeira com o apoio internacional dos EUA, a segunda com o apoio internacional - vale frisar, também financeiro e militar - da URSS e aliados do eixo soviético, especialmente Cuba, que dava todo suporte para guerrilheiros tupiniquins, isso tudo com fins de implantar no Brasil o mesmo regime praticado nesses lugares. Com isso, o jornalista pinta uma versão favorável à esquerda, como se apenas a direita praticasse esse tipo de coerção de indivíduos e pressão ideológica. Além do quê, o condutor da entrevista quer forçar uma imagem de extrema crueldade e violência numa simples e típica medida protocolar que não envolvia nenhuma tortura ou agressão (algo que, em um mundo altamente burocratizado como o de hoje, não deveria surpreender ninguém mais), e que na verdade exigia apenas que Geraldo Vandré desse alguns esclarecimentos na posição de um exilado que retorna ao seu país após ter fugido, e de quem sempre houve suspeitas claras de estar cooperando com a esquerda, sendo essa, aliás, uma associação que o próprio Geraldo Vandré admite ser razoável, visto que cantava músicas de teor subversivo. Ironicamente, esse programa de TV torna-se tão coercivo na maneira de colher as informações convenientes para construir a tese pré-estabalecida que deseja transmitir ao seu público, torcendo o entrevistado de todas as formas retóricas possíveis, que se deixa de notar o óbvio: a atitude tendenciosa da Globo reflete perfeitamente o mesmo tipo de postura que os militares, pelas razões deles, tiveram com Geraldo Vandré naquela ocasião.]

 - Só pra esclarecer esse episódio, do depoimento que você gravou quando voltou do exílio. Você gravou o depoimento numa sala do Aeroporto de Brasília. Que lembranças exatamente você tem e quem pediu a você que gravasse esse depoimento? O DOPS, o Exército?
 - Aquelas declarações foram feitas para uma pessoa que se me apresentava como sendo da Polícia Federal.

 [Surge na tela um pequeno texto explicativo, alertando o telespectador de que o ano era da ditadura militar sob o governo de Médici, enquanto isso sons de marcha marcial podem ser ouvidas ao fundo.]

 - Eu cheguei aqui, no Brasil, no dia 14 de Julho. Dois meses depois eu apareço como se tivesse chegando à Brasília. Achei tudo muito manipulado, sabe? É essa história dos VT's. Normalmente nós temos essa doença (apontando ao redor de si em direção às câmeras que o filmam). Eu estou falando aqui, o que vai ser mostrado vai ser uma seleção feita pela estação. Não vai ser o que eu estou dizendo. Isso é muito sério.

 [Durante esse momento, a entrevista passa a ser filmada de dentro do estúdio de edição, a chamada ilha. As imagens de Geraldo Vandré são captadas por uma câmera que filma a entrevista sendo transmitida por vários monitores dentro desse estúdio, com os vários painéis de controle ao redor. Passa-se claramente, em um cínico tom de chacota e ameaça, a idéia de que o Gerado Vandré estaria paranóico, alucinando, pois isso que disse não foi censurado, como ele supostamente sugere que aconteceria. No entanto, a entrevista é de fato toda manipulada, só que de forma mais sutil e sorrateira.]

 - Mas esse depoimento, pra encerrar esse assunto, teve algum peso na sua decisão de interromper a carreira?
 -  Não, eu estava chegando, vendo como estavam as coisas, eu não tinha a menor noção da realidade. Precisava passar por um processo de adaptação.
 - Se você tivesse a chance de hoje se dirigir a uma platéia de jovens, o que diria?
 - Vocês vão ter que votar, né? Eu 'tou por fora.
 - Que papel você acha que vai caber a Geraldo Vandré na história da música popular brasileira moderna?
 - Nunca fiz esse tipo de avaliação.
 - Você se acha suficientemente reconhecido?
 - Eu obtive o reconhecimento que eu procurei.
 - Em algum momento você se arrepende de ter interrompido a carreira?
 - Não. Raramente eu me arrependo das coisas que faço. Calculo bem as coisas, reflito bem, meço bem antes. Quando faço, já é pra ficar feito mesmo. Não tem arrependimento.
 - É verdade que você ficou escondido na casa de Guimarães Rosa antes de ir para o exílio?
 - Depois que o tempo vai passando, as coisas vão ficando claras. A FAB (Força Aérea Brasileira) propriamente dita não tinha nada contra mim porque eu andava por aí, estava às mãos dela o tempo todo e nada me acontecia. Mas para evitar que qualquer guardinha da rua pudesse tirar um proveito da situação, porque também tinha bastante isso, eu preferi sair de circulação. Então durante um tempo eu estive na casa da mulher de Guimarães Rosa. 

 [Mais algumas notinhas históricas são mostradas na tela, contando que os mesmos agentes que prenderam Caetano Veloso e Gilberto Gil em dezembro de 1968, em São Paulo, tentaram prender Geraldo Vandré, o qual, porém, teria escapado graças à ajuda da mulher de Caetano. Insinua-se, assim, que Gil, Caetano e sua esposa foram os heróis da pátria, que inclusive ajudaram Vandré, e esse foi o grande traidor dos camaradas, pois sequer reconhece, hoje, o heroísmo deles. A marchinha militar de escárnio é ouvida ao fundo.]

 - Em que posição você escala a música 'Disparada' dentro de sua obra? Qual você acha que é a obra-prima de Geraldo Vandré?
 - Acho que todas são iguais. Isso da 'obra-prima' é uma questão de predileção do público, dos meios de comunicação e dos chamados formadores de opinião.
 - Mas você deve ter uma predileção pessoal. Qual é?
 - Não tenho. É tudo igual mesmo.
 - Para efeito de registro histórico, você, primeiro, não se considera anti-militarista; segundo, não foi maltratado fisicamente durante o regime militar; e em terceiro, você disse o que quis naquele depoimento que você foi forçado a gravar quando voltou do exílio.
 - E quarto, eu tenho uma canção para o Exército Azul (Força Aérea Brasileira) 
(Geraldo Vandré começa a dar risada e mostra sua carteira de sócio da FAB)
 - ...Isso aqui é uma coisa muito bonita, sabia?
 - A canção que você compôs?
 - Não, a aviação. A maior loucura do homem é voar.
 - Em que situação Geraldo Vandré voltaria a se apresentar hoje?
 - Depende de onde. Eu tenho uma programação para gravar num país de língua espanhola. Essa é minha prioridade. Depois que fizer isso, eu vou ver minha programação para o Brasil.
 - Você declarou certa vez: 'Geraldo Vandré não existe mais'.
 - Não, eu não declarei isso. Eu disse que não canto comercialmente no Brasil, só isso.

 [O programa se encerra com a voz do jornalista declarando: "A entrevista termina assim. O grande solitário da MBP se recolhe a um quarto do hotel do Clube da Aeronáutica. Sozinho, vai em companhia do único habitante do país que ele próprio criou." Enquanto isso são mostradas imagens em slow-motion de Geraldo de costas, indo embora, subindo uma escada. O clima melancólico dá a entender que o senhor enlouqueceu, perdeu a razão e não sabe mais o que fala: a imagem perfeita para corroborar a idéia de que a esquerda é que afinal está certa nessa história.]


E a Globo é de direita...


sexta-feira, 15 de novembro de 2013

A origem do fenômeno homossexual







    Um conceito-chave para compreendermos este assunto é o da distinção entre sujeito e objeto. Sujeito é, pois, aquilo com que nos identificamos e com que podemos assim ter uma relação de orgulho ou de auto-crítica; objeto é aquilo com que não nos identificamos, mas que olhamos com distância, e com o qual podemos manter portanto uma relação de desejo ou de desprezo. Como se vê, nessa definição há um elemento muito sutil de interpretação e, logo, uma tentadora brecha para os mais perigosos equívocos — e mesmo por apontar ao que talvez seja a fonte das grandes confusões humanas, ela mesma chega a parecer confusa em si.

    Entretanto, um modo bastante eficiente de verificarmos a validade deste conceito e assim notarmos com maior nitidez os contornos que separam o sujeito do objeto — e com isso testarmos, sobretudo, a enorme diferença entre orgulhar-se por identificação e atrair-se por desejo —, está na maneira como nos relacionamos com nossos próprios impulsos sexuais. 

    O homem íntegro e saudável não tem afinidade com o universo feminino, quer dizer, com a mulher enquanto gênero sexual, pois não há aqui um elo de identificação, não se tem um elemento de orgulho suscitado na consideração do sexo feminino, e não há sequer um sentimento de auto-crítica — afinal a mulher não é o sujeito do homem. Por outro lado, o homem atrai-se pela mulher, ele a deseja e admira profundamente, pois nesse caso há sim um elo de objetivação — ora, a fêmea é o objeto, o objetivo maior do macho. 

    E estes dois sentimentos, o orgulho e o desejo, são distintos o bastante para compreendermos que se tratam de duas funções afetivas totalmente opostas, embora sejam ao mesmo tempo duas maneiras de apreciação. O homem aprecia ser o homem, e aprecia ter a mulher, porque o ‘ser’ pressupõe uma relação com o sujeito, enquanto o ‘ter’, uma relação com o objeto. Evidentemente, a recíproca, do sentimento feminino para com o homem, só pode ser verdadeira, embora, ao invés de possuir, a mulher sinta-se ainda mais feliz sendo possuída.

    Podendo isso estar um pouco mais claro, é possível entender agora o caso inverso da distinção, que é quando ocorre a confusão, e o sentimento que deveria ser orgulho vira desejo, e vice-versa. É compreensível que isso possa ocorrer porque em todo o desejar há um movimento de aproximação entre o sujeito e o objeto, e portanto há o risco de uma colisão entre os dois: o que gera a confusão, isto é, a “co-fusão”, o fundir-se conjuntamente com algo (a própria etimologia da palavra já revela esse sentido). Isso pode acontecer sobretudo se o desejo é por demais intenso, porém a noção identitária, o orgulho, por assim dizer, que mantém o sujeito a uma distância conveniente do objeto, deixa de atuar sobre ele. Nesse modo pervertido de relação, o desejo funciona como uma força atrativa desimpedida de qualquer outra força contrária, levando o sujeito e se tornar o próprio objeto desejado — e o que antes era só desejo vem a ser também orgulho e identificação, porque não há mais linhas divisoras bem definidas que separem o sujeito do objeto. 

    Essa situação, remetendo a um clássico tema místico, é como a tentativa de atravessar o espelho e se transformar no próprio reflexo, o qual de certo modo é uma inversão da essência do sujeito concreto que o contempla (como, no caso, a mulher é uma inversão do homem). É como Narciso que, vidrado em sua própria imagem, perde seu ponto de referência subjetiva, que deveria mantê-lo firme em sua posição de sujeito real; e sem o ponto de apoio necessário para manter o equilíbrio interno, se precipita nas águas de Eco, sendo tragado para uma dimensão oculta além do reflexo: o reino da morte, em contraste com o reino da vida, esse que por sua vez se acha aquém daquele espectro fantasmagórico invertido que pode ser visto no espelho fluvial — então nosso Narciso se transmuda no objeto, isto é, em seu inverso, o ser irreal, sem vida, inerte na escuridão profunda da lagoa.

    Curiosamente irônico é, também, o fato de que o fenômeno narcisístico pode se referir ao homossexualismo tanto nesse sentido de um sujeito que se torna seu oposto (o objeto), como no sentido de uma auto-obsessão do próprio sujeito/objeto. A ambivalência nesse caso, embora pareça contraditória, é apenas o resultado óbvio da perda deste senso de distinção entre sujeito e objeto. Na confusão, o sujeito verdadeiro é tão auto-anulado em favor da mistura com o objeto, quanto até mesmo o objeto, ao se misturar com o sujeito, é rejeitado em sua forma pura, singular, distinta. 

    Como conseqüência, o homossexual fica tão preso e fundido a uma natureza oposta à sua que, paradoxalmente, ele se vê incapaz inclusive de apreciá-la da maneira correta, sadia, aquela que possibilita o compartilhamento entre duas naturezas diferentes e complementares; o homossexualismo é portanto, em termos de funcionalidade sexual, a forma mais filauciosa, auto-centrada, egoísta de relacionamento amoroso, porque implica que um gênero esteja bloqueado para o outro e fechado em si, e ainda por cima numa representação alucinatória que é alheia à sua original. 

    Enfim, o Narciso é tão obcecado consigo próprio que, buscando incessantemente sua imagem, se esquece porém de que ele, enquanto ente concreto, não é essa imagem, e de que aquilo que encontrará mergulhando no reflexo da água é de fato o inverso de si mesmo: o objeto — o demônio, o fantasma, a morte — que busca sugar a essência (a alma) do indivíduo.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Homem e Mulher - Parte 2: Natureza e cultura

   
    A cultura é algo que, para os tipos mais apegados ao plano da matéria, deve lutar com todas suas forças de auto-preservação não apenas para manter-se conservada — o que, deve-se dizer, é muito legítimo —, mas para permanecer absolutamente intocada, com seus símbolos sacrossantos e seus costumes puríssimos arraigados no solo de um povo; que o digam os ultra-nacionalistas de toda espécie, de esquerda, de direita, nazi-fascistas, socialistas ou sionistas. E, não obstante o desejo desses indivíduos supersticiosos e mesquinhos, ferrenhos defensores de suas preciosas “raízes” familiares, étnicas, raciais ou religiosas, a cultura fatalmente acaba tendo de mudar para adaptar-se à implacável dinâmica da história, a qual, sem cerimônia alguma, desde sempre promove choques entre civilizações, avanços técnicos, descobertas e progressos de toda sorte. E, por outro lado, a natureza, que periodicamente percebemos variar em suas múltiplas manifestações fenomênicas, na realidade jamais muda em sua essência — pois ela já se encontra num nível supratemporal, guardada por leis eternas, imutáveis e absolutas.

    Por essa linha de raciocínio podemos traçar uma diferença essencial entre o princípio masculino, que valoriza mais a natureza — tão segura de sua eternidade quanto livre para assumir formas distintas —, e o princípio feminino, apegado mais à cultura — essa tão inflexível para as trocas de influências estrangeiras quanto desengonçada demais para resistir ereta aos constantes sopros da substância transitória. Há, contudo, em certas correntes de pensamento esquerdistas e revolucionárias, tentativas de se estabelecer uma concepção completamente invertida da realidade, que associa mulher à natureza e homem à cultura. No caso, a confusão se dá por um tipo de imagem falsificada da natureza como um ponto de contato com o sagrado feminino, e da cultura como uma expressão do poder fálico masculino.

    Na realidade, se partimos apenas do ponto de vista da natureza como um todo, vemos que a parte que se refere ao que está mais alto, isto é, ao que é mais amplo e geral, se liga ao homem, pois é ele quem tem o domínio dos céus e que prefere estar no topo das montanhas enxergando sua paisagem de modo panorâmico; e que a porção da natureza referente ao que está mais embaixo, ou seja, ao que é mais reduzido e particular, está ligada à mulher, que tem o domínio da terra e que gosta mais de ficar nas planícies, segura e atenta aos detalhes que compõem suas paisagens mais próximas.

    Portanto, se o movimento que tende a uma abertura do que nos cerca caminha no sentido de uma natureza total e plena, que é o princípio masculino, aéreo, celestial, elevado, expansivo, então aquilo que tende a um movimento inverso, que comprime nossa visão, só pode nos levar assim ao sentido de uma simples cultura, isto é, de uma realidade artificial — pois que se trata de uma mera manifestação particularizada da natureza, restrita ao que é tocado pelas mãos humanas, e já não mais estendida a uma realidade cósmica, que ergue montanhas, cria planetas e regula sistemas intergalácticos inteiros.

    Ocorre porém que, como mencionei linhas atrás, esta imagem da grande metrópole é muitas vezes apontada como um elemento preponderantemente masculino, devido a suas altas estruturas e robustas construções, que de certo modo representam um símbolo de poder fálico; enquanto isso, a mulher estaria mais voltada para a natureza, simples, gentil, delicada, maternal. Esse ponto de vista ingênuo faz sentido sobretudo se consideramos o argumento, muito utilizado por feministas e gnósticos, de que a mulher é o verdadeiro princípio da criação natural, sendo o homem, nesse quadro de interpretação, um ser estéril, relegado ao papel de artífice emulador da natureza (portanto um tipo demiúrgico e negativamente patriarcal). Mas, como já explicado no texto anterior, essa visão somente se dá por um tipo de miopia intuitiva que aparta da natureza sua dimensão transcendental, do Espírito (‘espirar’, o sopro vital) que traz do infinito o verdadeiro impulso da criação, capaz de insuflar vida na matéria — como o próprio sêmen faz em relação ao óvulo; os raios solares, em relação à superfície terrestre; o plano metafísico, em relação ao físico; e enfim, o princípio masculino (de emanação), em relação ao feminino (de recepção). O homem é, pois, o verdadeiro agente criador.

    Com isso podemos entender que a cidade, bem como a cultura de modo geral, é representada de fato pelo princípio feminino, isso se a contrastamos com o campo ou com o meio natural, que é masculino. Mas como explicar, assim, as rígidas estruturas urbanas que remetem mais àquela idéia de um símbolo fálico tornado concreto pela disposição masculina de dominar a natureza? — podem argumentar, por exemplo, os gnósticos e feministas. E a resposta é: por mais que essas estruturas tomem a forma de um falo ou de qualquer coisa robusta e masculinizada, elas nunca passarão de objetos artificiais em relação às verdadeiras estruturas da natureza, muito mais vigorosas e imponentes. Um edifício, construído ao longo de décadas, jamais terá a dimensão de uma montanha, formada naturalmente num processo milenar — será no máximo um Empire State, ou seja, um arranha-céu, nunca como um Monte Everest, que não só arranha, mas rasga e abre todo o céu a sua volta. O humano, com sua cultura tecnológica, pode levar geringonças para além do espaço estratosférico e até alcançar alguns de nossos planetas vizinhos, mas a natureza já tem seus cometas vagando por toda a imensidão do cosmo — ora, a natureza já tem os próprios planetas, estrelas e galáxias. Como se vê, trata-se de uma comparação bastante injusta, porque é o artificial contra o natural.

    E se a afirmação de que a cidade (ou cultura) é representada pelo homem apóia-se sobre esta analogia entre a forma fálica das construções urbanas e um certo caráter masculino — no que inclusive se confessa que a imponência e a rigidez formam realmente um caráter masculino —, então nada mais justo do que considerar que as estruturas naturais, como as montanhas e as enormes formações rochosas em geral (que também são fálicas e ainda mais rígidas e imponentes que qualquer engenharia humana), são assim mais masculinas do que femininas, de modo que, seguindo esse mesmo raciocínio, o homem acaba por tender à natureza muito mais do que a mulher. 

    Por fim, a correlação mulher/natureza só funciona se trabalhamos com um sentido muito peculiar de natureza, relacionado a um tipo de ambiente fechado, obscuro e misterioso: densas florestas, matas selvagens e cavernas sombrias, portanto locais onde se acharia, conforme a crença gnóstica, o tal sagrado feminino. No entanto, não só esses ambientes constituem uma mera faceta da natureza, e aliás a mais particularizada e restrita, como é possível, também, traçar um paralelo entre essa mesma disposição feminina ao mistério enclausurado (como tipicamente simbolizado em deusas, desde as babilônicas até as ‘prostitutas sagradas’ do paganismo) e certos aspectos muito comuns e representativos da própria cidade: a reclusão em estabelecimentos fechados, os pubs quentes e festivos, a noite agitada e caótica, e enfim, o constante clima de emparedamento cavernoso e orgiástico típico da tradição dionisíaca.


    E, a propósito, a natureza, em seu sentido maior e integral, é contemplada de forma muito mais abrangente nesta imagem de um horizonte livre, aberto, de grande amplitude, desimpedido de edifícios, torres e muralhas, ou mesmo de copas fechadas, grutas claustrofóbicas e montes que cercam apenas os que se situam fixos nos vales e planícies. A natureza tanto cresce quanto aumentam os espaços, as alturas, e tudo que segue se elevando aos altos cumes, à visão larga, aos céus, ao infinito. É sobre as montanhas, é entre as estrelas, é nas nuvens e no sol que vemos a real natureza, portanto é no homem que o natural também se expressa com maior ênfase.

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Nietzsche e os comunistas

   
   Como se sabe, Nietzsche tece uma feroz crítica ao racionalismo acachapante de nossa era, ao passo em que confere um grande valor aos instintos nobres da antigüidade (evidentemente, da forma como ele os entendia), reproduzindo aquele velho tema, até hoje discutido em vários círculos intelectuais, de que a razão seria o aspecto degenerativo da sociedade, em contraste com um tipo de instinto e de paixão revitalizadora da potência humana. Entretanto essa concepção só tem lugar na filosofia de Nietzsche na medida em que, erroneamente, ele (ou os românticos em geral) atribui à razão o caráter preponderante dos tipos fracos, baixos, sórdidos e afeminados.

   Tal confusão, no fundo, tem origem numa associação forçada que ele estabelece entre a razão — que seria o princípio apolíneo das formas bem definidas e proporcionais — e um tipo de lógica meramente calculista e pragmática, que, segundo seu sistema filosófico, por carecer de uma matriz de fogo e de poder de criação dionisíaco, nos conduziria a uma moral decadente, ancorada em justificações teoréticas que deslocam o peso real e imediato da existência para um plano distante, frio, ideal e, afinal de contas, falso. Exemplo desse tipo de moral decaída seria, assim, a dos escravos, espíritos débeis e submissos, que, por uma estratégia defensiva gerada pelo ressentimento aos seus senhores, se organizariam para infectá-los com uma razão mórbida e inibidora da coragem instintiva, no que estaria a oportunidade de virar o jogo, alçando os fracos a uma posição de vantagem; e o que resulta, invariavelmente, na própria decadência da sociedade como um todo.

   Esse argumento nietzscheano, embora fundamentado numa observação bastante compreensível do ponto de vista do sujeito nobre, vigoroso e saudável (com o qual, aliás, o próprio pensador alemão parece se identificar), possui suas razões mais profundas contaminadas por germes esteticistas, talvez oriundos do Sturm und Drang, que acabam por deturpar a verdadeira compreensão do problema.

   Pois, se atentamos ao discurso comunista — que para Nietzsche representa o moderno protótipo da mentalidade de escravo (e nesse ponto com toda razão) —, vemos que, de forma irônica, o mesmo tipo de racionalidade fria e calculista também é denunciado aqui como um atributo próprio dos comerciantes, industriais, donos do capital, enfim, os representantes da classe burguesa, considerada a emanação de todo o poder pós-feudal.

   Mas na verdade essas atribuições da razão como simples vícios modernos se baseiam apenas em um tipo de imagem rasa tanto dos burgueses quanto dos escravos, isso porque, ao considerar a racionalidade o caráter essencial dos dois, tais análises modernistas se mantêm restritas à camada mais aparente de ambos, ao menos dentro de um recorte parcial das situações observadas; no entanto, por trás e por baixo dessa imagem de racionalidade mesquinha e perversa (que afinal é só um tipo deturpado de racionalidade), ou seja, na parte menos visível da análise, se esconde o verdadeiro elemento preponderante desses tipos frios e calculistas, tão condenados por Nietzsche e pelos comunistas: trata-se do próprio instinto passional, cego, selvagem e impetuoso, a que esse mesmo Nietzsche atribui um valor de nobreza e do qual o comunistas pretende retirar uma parte fundamental de sua força. Está aí portanto um dos maiores equívocos filosóficos, e aliás dos mais trágicos em suas conseqüências no desenvolvimento da política e do pensamento modernos. 
   
   Ora, consideremos a idéia do típico sujeito psicopata, cuja imagem mais vívida toma forma plena no personagem Dr Hanniball Lecter, do famoso suspense ‘Silêncio dos Inocentes’. Tal personagem nos remete àquela impressão do indivíduo extremamente racional, que usa sua mente como uma espécie de máquina infalível para engendrar planos maquiavélicos e assim atingir seus objetivos gélidos, suas finalidades sombrias, que em geral envolvem a desgraça de terceiros. Mas vejam como não há nada menos racional, e pelo contrário, mais passional, mais instintivo, de um instinto altamente animalesco, do que estabelecer como meta o ato de canibalismo! Assim, para além daquela imagem do homem frio, silencioso, de expressão cínica, seguro de todos seus mais incríveis dotes intelectuais, o que se vê é precisamente o contrário dessa aparência: o homem-besta, consumido em chamas mentais, em urros assustadores, numa expressão monstruosa, se revolvendo em suas mais complexas e obscuras motivações passionais. Os instintos impulsivos são, dessa forma, a verdadeira tônica de sua vida.

   Nietzsche inverte a ordem de hierarquia entre a determinação racional do espírito (consciência/luz) e os seus impulsos instintivos (inconsciência/escuridão), o qual ele confunde com a nobre virtude dos senhores, sem perceber que esses sempre foram mais voltados à reflexão equilibrada, ao auto-domínio, à força desimpedida de reações inconscientes e entorpecidas da carne — compatíveis mais com o comportamento plebeu —, embora também não descartassem a naturalidade das emoções humanas e do extravasamento sentimental em ocasiões propícias, por exemplo, na arte e nos momentos de celebração. Todavia, a chama de Dionísio está constantemente consumindo a alma dos comunistas, que apóiam sobre o ímpeto revolucionário, levado adiante por uma massa furiosa e desgovernada, a sua maior aposta de vencer os inimigos de classe (a burguesia) e assim instaurar a ditadura do proletariado — o que no entanto não os impede de enxergar esse processo como uma mera dinâmica racionalmente bruta da natureza, como entendido, por exemplo, na dialética materialista de Marx. Porém o fato ainda é que os sujeitos que compõem os movimentos de esquerda são, a despeito desse pretenso racionalismo que exibem em suas teorias, os tipos mais dionisíacos, que idolatram a rebeldia, cultuam as drogas, se acham grandes artistas e vivem afogados num maremoto de emoções pueris — ou seja, os protótipos medíocres de um Dr Lecter, sujeito sensível, bem articulado na forma de justificar suas estranhas intenções, e que ao mesmo tempo age como uma fera sanguinolenta e descontrolada. Pois é a moral auto-flagelante do escravo que está embebida e intoxicada de vinho dionisíaco.

   Contudo, se Nietzsche ainda mantém uma certa fidelidade ao seu esquema — talvez por se tratar de um indivíduo que busca o comprometimento com um pensamento singular, diferindo portanto de um simples membro do rebanho que vai aderindo às tendências oscilatórias e inconstantes do comportamento coletivo —, os comunistas, por outro lado, tendem a alternar inconscientemente entre um desmedido apego às emoções mais histéricas e um exacerbado culto da razão mais estéril: e assim ele adquire aquela expressão do típico psicopata engenhoso, que à luz do dia trabalha em seu elegante gabinete concebendo toda sorte de fórmulas práticas, e nas sombras da noite, tal como o sr. Hyde do dr. Jekyll, reverte todos seus esforços meditativos numa explosão de brutalidade, revelando que seus sofisticados cálculos ocultavam nada mais que um desejo primordial de confrontação, sensualidade e entorpecimento.

   Pois é dessa maneira que se comporta o indivíduo moderno, sempre tão obcecado pelas necessidades materiais e pela incessante busca de prazeres terrenos, indivíduo esse que, assim, tem a razão absoluta como norte só enquanto ela serve aos desígnios de sua paixão desenfreadamente selvagem. E por isso toda a linguagem do burguês liberal-progressista ou do comunista revolucionário, embora seja carregada de uma impenetrável terminologia utilitarista que parece apontar para uma abordagem completamente racional do universo, no fundo encobre, com sua tediosa afetação de pragmatismo, apenas um sentido degenerado da vida, pois que desprovido de espiritualidade e de ligação com o transcendente.

   E deste modo, encarando o mundo somente a partir das necessidades biológicas, primitivas e materiais, tal tipo acaba por se reduzir a uma imagem grotesca que fatalmente irá refletir o caráter inferior de um animal, o qual nada faz além de seguir seus instintos carnais, sejam esses os de copular, chafurdar, se esbaldar no sangue de suas presas e expelir urina em troncos de árvore — ou os de expandir os mercados, maximizar os lucros financeiros, lutar pelos interesses de sua classe e atender às necessidades “reais” de uma sociedade burocratizada —; enfim, um animal que, contudo, nunca é capaz de se virar para o céu da alma e ver que a existência possui um propósito maior, divino e glorioso, cuja compreensão é imprescindível inclusive à própria continuidade da vida, aqui e além.

domingo, 27 de outubro de 2013

Homem e Mulher



   Se a figura da mulher é identificada simbolicamente com a Terra — Mãe-Terra, Mãe-Natureza, Gaia e deusas da fertilidade em geral —, tendo assim seu domínio sobre o Mundo Inferior da Matéria (que se relaciona etimologicamente com as palavras ‘materia’, ‘madeira ‘mater’, ‘mother’, ‘madre’, ‘matrix’), o homem, seu complemento essencial, só pode ser então, por analogia, o Céu (‘celestial’, ‘cœlestium’ ‘cælestis’, ‘cælum’, que numa raiz indo-européia mais antiga se refere ao sentido de brilho e claridade); e portanto ele reina sobre o Mundo Superior do Espírito (‘spiritus’, ‘spirare’, ‘espirar’, trazendo esta idéia da alma como o sopro divino que confere vida à matéria moldada como simples plataforma corporal para a consciência), ou ainda sobre o Mundo Superior da Mente (‘mentis’, ‘mens’, ‘men’, enfim, a alma, a inteligência).

   Contudo a vida, compreendida de maneira mais ampla e integrada, está expressa simultaneamente em ambos os elementos, razão pela qual a consciência — a máxima manifestação da realidade — só existe numa síntese entre os planos objetivo (matéria) e subjetivo (espírito). Numa via contrária de análise, podemos entender a morte justamente como a separação destas duas instâncias, a física e a metafísica; e assim o mundo material (o princípio feminino) acaba por cobrar aquilo que lhe pertence, ou seja, o corpo, que desce para as entranhas da terra onde esse terá seu fim decompondo-se num árduo processo temporal; ao passo que o mundo espiritual (o princípio masculino) reclama apenas aquilo que é digno de sua grandeza, isto é, a alma, que, após a morte do indivíduo virtuoso, é dito que sobe aos céus para descansar em paz na eternidade.

   Entretanto a alma, considerada em si mesma, nada mais é do que uma abstração da consciência incorpórea, incapaz de existir senão num mundo ideal, governado pelas formas perfeitamente regulares e pelas leis da eterna harmonia. Já o corpo, por si só, é o objeto inanimado, a matéria bruta, sem vida, submetida unicamente às leis entrópicas da pura inércia física. Portanto o espírito e o corpo indicam a morte somente quando separados um do outro. E com isso temos, de um lado, a imagem daquele estranho espectro plasmático vagando na imensidão de uma esfera onírica (o típico sonho platônico, herdado pelos gnósticos), e por outro, a imagem de um corpo inerte e frio, denunciando toda a impiedosa rudeza deste mundo. Afinal, as duas imagens se referem ao lado sombrio da existência, sendo por isso geralmente utilizadas como temas básicos de contos de terror — uma porque remete a fantasmas, vultos e efeitos paranormais, a outra porque horroriza com a nudez da carne exposta, podre e dilacerada.

   Mas pensando agora no poder da criação, vemos que a mulher é responsável por parir os filhos do homem. Desse modo, há inclusive uma tendência, sobretudo em meios feministas, de se considerar a mulher como o princípio gerador da vida. Trata-se, evidentemente, de uma visão encurtada do cosmo, em plena sintonia, aliás, com todo tipo de visão fisicalista e materialista que aparta do universo sua dimensão metafísica, no qual assim a matéria seria responsável por sua própria geração espontânea: o ‘Big Bang’ é encarado, dentro dessa limitada perspectiva, como uma espécie de parto cósmico que não exigiria nenhum ato primário de fecundação, isto é, nenhuma ordem divina para lhe dar o impulso criativo primordial. No entanto esse primeiro impulso é justamente a força que vem do infinito (o Céu), no sentido de um plano superior, de maior elevação da consciência: o próprio Espírito.

   Assim também se dá a relação entre o homem e a mulher: essa não pode gerar a vida por conta própria. Ela necessita de todos os atributos superiores do homem; pois esse é quem geralmente fica incumbido da tarefa de conquistar sua parceira, e que assim, a princípio, deve impor sua força, sua vontade e sua inteligência para que o fim da geração seja consumado; e até mesmo na própria cópula, quem fornece maior energia é o homem, possuidor do instrumento ativo. O homem é, dessa forma, a semente primordial (organicamente incorporada no próprio sêmen), o sujeito (consciência) da ação, o fundamento/firmamento da vida, enfim, o ponto de partida da existência humana, o que se relaciona com o Espírito, o Deus Criador, o Céu de Luz, que é o ponto de partida da existência universal. Nesse sentido, a mulher é a finalidade da vida, o objeto da ação (seu próprio aparelho reprodutor em forma de alvo nos revela essa sua disposição à passividade), o objetivo da existência humana, tudo isso relacionado à Matéria, à Terra, à Deusa Fértil.

   Pois entendemos que a mulher oferece a condição material em que se pode desenvolver a vida, e por isso o óvulo (oval como o próprio globo terrestre), que de início não passa de um mero conglomerado biomolecular ocioso, é o que, ao longo da gestação, vai tomando a forma do ser vivo. Mas isso apenas a partir do recebimento da semente vital, o conteúdo, que é a luz, o impulso enérgico, a inteligência, a alma, o espírito etc., que deve despertar o corpo (matéria) para a vida.

   A própria vida na Terra só foi possível graças à luz do Sol (mais uma vez, o Céu luminoso, que lança seus raios solares como os semens ejetados em direção ao óvulo). Em suma, o princípio da existência se dá sempre por este mecanismo de emanação e recepção: o princípio masculino e o feminino, respectivamente. Por isso o homem é, em relação à mulher, essencialmente ativo, dado às asperezas, ao frio e ao desafio, enquanto ela é passiva, sentindo tanta necessidade de conforto, calor e proteção.

   Em outros níveis simbólicos, relacionados com essa mesma situação discutida, notamos que o homem está representado pelo elemento Fogo (ou Ar), que aquece e ilumina como o Sol contemplado nas alturas do céu diurno, que é quente como o corpo livre e em alta atividade, que queima como todo processo energético, e que, enfim, traz o calor tão almejado pelas mulheres. Enquanto isso, a mulher tem como símbolo o elemento Terra (ou Água), que é frio e amoldável como o barro úmido, propício para o trabalho de modelagem, e que também é escuro, enigmático e perigoso como toda floresta, selva ou oceano em que o homem busca se lançar a fim de atender às suas ambições de desbravamento e conquista pessoal — pois ele sente menos sede de guardar ou de usufruir a riqueza produzida do que de criar e explorar o novo, assim tendo como verdadeiro prêmio a consciência de seu enorme poder de engendramento.


   Por fim, constatamos que o homem foi feito para a mulher e a mulher, para o homem, pois o caráter dos dois se complementa, as disposições de um encontram-se direcionadas às do outro, e os desejos de ambos são mutuamente satisfeitos, formando assim um uno coeso de existência, que é a síntese dos dois princípios opostos — da mesma forma como a realidade total do universo só é possível na relação entre matéria e espírito.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

A lei do mais íntegro


Os materialistas/fisicalistas costumam dizer que não existe o bem e o mal nem qualquer parâmetro de moralidade que ultrapasse os limites do tempo e o espaço. Para essa gente, portanto, seriam nossas noções instintivas de como agir em relação uns aos outros nada mais que o resultado de mecanismos evolutivos, que no decorrer das eras teria nos equipado com um sistema neurológico adaptado para produzir sensações de prazer e dor conforme o comportamento social mais adequado à sobrevivência da espécie. Mas o que essas pessoas parecem ter uma certa dificuldade de compreender é que isto que elas chamam de mecanismo evolutivo não é uma alternativa melhor de explicação para o conceito de moral absoluta; é, na verdade, uma mera confirmação do mesmo. 

Se admitirmos que há um parâmetro eterno de moral absoluta, pensar, então, em um mecanismo de evolução que atue no sentido contrário a essa moral é como querer depor contra a ordem lógica do universo, tentando conceber uma situação paradoxal em que o desenvolvimento dos principais fatos biológicos, no curso do tempo, contraria as regras estabelecidas na eternidade. Nesse caso, ou a concepção de moral admitida, ou a de evolução conjeturada, ou as duas simultaneamente, poderiam estar erradas (ora, toda teoria científica, ética ou teológica será sempre passível de crítica). Contudo ainda não se poderia excluir a possibilidade de que tanto uma moral absoluta quanto um processo de evolução existam, e aliás coexistam em perfeita sintonia.

O que ocorre na realidade é que em um plano eterno já se encontram determinados os padrões de comportamento biológico que favorecem a vida bem como o seu devido prosseguimento evolutivo rumo à máxima consciência moral; conseqüentemente, na dimensão espaço-temporal esses mesmos padrões de comportamento biológico deverão compor os quadros de regras da natureza (com desvios, é certo; mas o desvio, por sua vez, pressupõe a regra). Só o que não é possível é que o simples desenrolar dos fatos no tempo, apenas por si mesmo, produza suas próprias leis primordiais (como a tendência biológica de se buscar a vida e a consciência), sem estar, dessa forma, dialeticamente apoiado em um plano eterno -- no qual, a princípio, já estejam estabelecidos padrões absolutos de fenômenos naturais. 

Por isso, faz muito mais sentido dizer que as diversas teorias evolucionistas constituem antes uma tentativa de se observar como a substância eterna do universo manifesta-se na dimensão temporal através de fatores como a mutação gênica e a seleção natural dos seres vivos. Pois, assim, ao longo dos tempos, os tipos mais fortes prevaleceriam no ciclo da vida por atenderem a um padrão de qualidades morais fixado na eternidade.

Isso não quer dizer, entretanto, que os tipos mais "aptos à sobrevivência" sejam os mais violentos e insensíveis ao sofrimento alheio, tampouco que sejam de uma excessiva delicadeza e compassividade. Eu, particularmente, acredito que a evolução dê preferência aos seres que sabem cultivar não somente a paz, mas a violência, embora em uma proporção muito específica, que, assim, se torna benéfica à vida: ou seja, nem tanto mais que se tornem embrutecidos por uma sede de sangue insaciável, nem tanto menos que passem a repudiar a guerra e a própria competição (da qual vieram inclusive a se tornar os vencedores no processo evolutivo). 

A propósito, a evolução deve dar preferência a um tipo de espírito que caminha no sentido de uma maior integração mental, isto é, que tenha um maior poder de formar sínteses entre os princípios opostos da realidade, a capacidade, portanto, de articulação dialética da mente. Ora, os fortes amam tanto a paz quanto a guerra; e, embora prefiram a vitória e a exaltação de si, também reservam uma parte de seu gosto para a derrota auto-imposta e a melancolia voluntária.

Os fracos, por seu turno, ao se distanciarem desse caráter dialético de integração mental, passam a oscilar inconscientemente entre dois estados de comportamento opostos que nunca se encontram em uma síntese perfeitamente consciente de si, portanto nunca integram uma linha contínua e coerente de ação e pensamento: assim, por um lado, estão constantemente envolvidos em guerras sem fim, buscando a vitória a todo custo, sem jamais carregar qualquer código ético de batalha (como o código de cavalaria e de honra militar, que esses tipos consideram um mero véu a encobrir jogos de interesses mesquinhos), sem nunca prestar qualquer respeito aos seus adversários (já que acreditam que o respeito ao inimigo não passa de submissão aos "agentes opressores", e que tudo que importa é defender os interesses de sua classe); e, por outro lado, no outro pólo dessa oscilação inconsciente, repudiam emotivamente toda forma de violência e guerra, revelando nesse ponto um extremo cansaço para as disputas e os combates.

Na era moderna, nenhum outro grupo representa melhor esse caráter torpe e pusilânime do que os comunistas, aqueles que não cessam de chorar pelas tristes mazelas da humanidade, de se lamentar acerca da terrível crueldade deste mundo, de se compadecer com as dores dos 'fracos e oprimidos', e que, de forma irônica, também foram responsáveis pelas maiores atrocidades e derramamentos de sangue que já se viu na história.

Devo dizer que este comentário refere-se, é claro, a uma análise meramente ligada ao universo sociológico do seres humanos. No entanto, mesmo em termos do desenvolvimento evolutivo dos animais, dos mais complexos aos mais primitivos, me parece certo que semelhante princípio se dá nas relações entre as diversas espécies. Aquelas que tendem a um tipo de comportamento que integra habilidades e temperamentos opostos (competitivos e cooperativos; predatórios e mutuais; bélicos e afetivos) prevalecem na natureza. Dessa forma, aliás, é que os seres vivos foram evoluindo até se chegar ao próprio homem, que de todas as espécies é a que mais se aproxima do modelo integral a que me refiro. E por isso mesmo ele é superior a todas as outras criaturas da Terra.

Ademais, o aumento da multifuncionalidade cerebral, da eficiência de memorização e da capacidade abstrativa de calcular eventos futuros -- tudo isso proporcionado pela busca de uma maior integridade perceptiva do tempo -- desempenhou um destacado papel em seu prevalecimento, pois possibilitou que o poder da palavra (mais precisamente a palavra de confiança) adquirisse grande valor nas relações entre indivíduos e comunidades. Com isso, a promessa, a lembrança e o cumprimento dos diversos acordos tornaram-se a chave para o sucesso da espécie humana em relação aos animais, e, em canais mais estreitos que adentram a própria humanidade, de determinadas tribos, sociedades e nações.

Coisas como a honestidade, a responsabilidade individual e a honra são de importância vital para o tipo conservador pois ele entende que a necessidade de conservar esses elementos decorre, antes mesmo de um simples mecanismo evolutivo, de um princípio moral que é eterno, universal, absoluto, metafísico, e que, por fim, garante não apenas sua sobrevivência física, mas a salvação de sua alma, a vitória mais importante de todas.

Assim, compreende-se, também, por que um conservador, ao se ver impedido de manter certos jogos de politicagem barata, ou de enviar milhões de indivíduos para a vala comum dos 'inimigos de classe', ou de buscar uma tipo de lucro imoral, ou de depositar todo o valor da existência na matéria, ou de buscar um tipo de Estado controlador e paternal que se infla de riquezas da noite para o dia e cuida da população ao preço de sua própria independência, não o faz por nenhuma teimosia retrógrada, mas por saber que agir com esses impedimentos é a única forma de alcançar a vitória plena em todos os sentidos. As chamadas 'travas morais' são para o conservador o que para o jogador de xadrez é a previsão de que um movimento aparentemente vantajoso a curto prazo pode resultar, em alguns lances seguintes, na sua completa derrocada.

Nesse sentido, a força do caráter moral que o conservador busca manter -- e que o faz vitorioso tanto no plano físico quanto no metafísico -- apenas traduz sua disposição de assimilar, além da percepção de tempo (passado-presente-futuro), a percepção de eternidade. 

sexta-feira, 28 de junho de 2013

A verdade completa sobre as manifestações


Nota inicial: Eu sei que muitos que participam destas manifestações nacionais estão longe de se considerarem marxistas, ou comunistas, ou mesmo esquerdistas (no sentido mais amplo e genérico em que a maioria se declara a fim de evitar maiores compromissos partidários e ideológicos). É verdade que alguns se dizem absolutamente apartidários, ideologicamente neutros ou anarquistas, e há, em alguns pontos das manifestações, até aqueles que se dizem direitistas, talvez acreditando que no meio da confusão toda possam reverter o sentido essencialmente esquerdista dos protestos — eu, por outro lado, acredito que os direitistas agem melhor se mantendo longe dessas muvucas para não darem força ao movimento que tem em sua origem a óbvia intenção de utilizar a classe média conservadora/liberal para transferir poder de legitimidade ao discurso marxista. Ainda assim estão todos lá, imaginando que lutam em prol de um país mais justo. Dito isso, devo esclarecer que, apesar dessa diversidade toda de segmentos ideológicos presentes no evento, para o efeito retórico do raciocínio que pretendo aqui desenvolver, já inicio o texto partindo do ponto de vista marxista sobre as manifestações, e dessa maneira desejo chegar a uma conclusão que, creio, a muitos soará surpreendente.

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Se os manifestantes “pacíficos” que se aglomeram nas principais avenidas do Brasil são, em sua nítida maioria, aqueles apontados pelos marxistas como a odiosa classe média reacionária, ou seja, os burgueses exploradores da classe proletária que apenas deturpam o sentido real dos protestos arrancando-lhes o caráter verdadeiramente revolucionário, e que, além disso, se aliam à “imprensa direitista”, redirecionando as reivindicações para focos contrários aos interesses da classe oprimida e limitando o poder de contestação do movimento, então concluímos, assim, que, para os marxistas, os únicos que fazem jus às manifestações são aqueles que mantêm a estrita fidelidade partidária de esquerda (os militantes com bandeiras de partidos, tais como PT, PSOL, PCdoB, PSTU, PCO, PPS etc.). Também sabemos que, para o pensamento marxista, os verdadeiros revolucionários são aqueles que, sem medirem esforços, estão empenhados em instaurar um sistema de governo comunista. Dessa forma, o revolucionário marxista só estará satisfeito quando vir concretizado um tipo de governo inédito no Brasil, com outra estrutura de poder, algo talvez mais próximo do que já se encontra implantado em Cuba desde a sangrenta revolução que lá houve em 1959. 

Mas para se chegar a esse novo modelo de governo seriam necessárias, de acordo com as próprias expectativas dos marxistas, ações muito mais ousadas de luta social. Por exemplo, seria preciso passar por cima de leis “opressoras”, demolir sistemas morais “ultrapassados” e, enfim, aceitar até mesmo a guerrilha urbana como forma legítima de pressionar as autoridades e de eliminar os opositores contrários à implementação do novo regime. Precisaria haver, sobretudo, um senso de insatisfação popular tão mais intenso, por força do qual as reivindicações não terminassem na simples questão de tarifas do transporte público, mas continuassem até as últimas e dolorosas conseqüências da revolução, abarcando todos os setores da sociedade. Portanto, como o próprio queridinho de toda esquerda (Che Guevara) diz melhor do que ninguém, seria necessário possuir “o ódio como fator de luta, o ódio intransigente ao inimigo, o ódio que impulsiona além das limitações naturais do ser humano e o converte em uma efetiva, seletiva e fria máquina de matar” (sim, são palavras daquele sujeito de barba e boina que vemos estampado nas camisetas de nossos adolescentes). 

Afinal, é dessa forma que um autêntico esquerdista revolucionário encara o seu grande desafio político, e é por isso que ele se sente tão impelido a queimar ônibus só pra expor seu descontentamento com o sistema de transporte; usar o cidadão comum (pobre ou rico) como refém de chantagens coletivas, assim prejudicando qualquer indivíduo a fim de chamar atenção às suas causas (sempre mais “nobres” do que a vida de qualquer pessoa); agredir qualquer um que se coloque em seu caminho ou se coloque contrário às suas idéias sobre métodos de se fazer política; montar barricadas no meio da rua como um soldado em guerra, embora o “inimigo” no caso seja o próprio sistema que ele deveria estar ajudando a melhorar no dia-a-dia; atacar com todos os meios disponíveis os policiais com o intuito de abrir caminho por avenidas (bloqueadas para garantir a segurança pública) e até por sedes do governo. Ou, pelo menos, é por isso que ele se sente tão confortável assistindo às cenas de destruição da cidade, pensando que os infelizes que depredam e saqueiam as lojas são apenas reflexos de uma classe oprimida que se revolta contra o opressor comércio burguês e toma o que é seu por direito. É assim que um marxista pensa de verdade, e é por isso que ele não condena nem mesmo a violência mais explícita e covarde (ah, sim, só a da PM), porque em sua cabeça não existe a idéia de responsabilidade individual, mas somente a luta de classes em curso na história.

Entretanto, se dissermos que a culpa pela onda de violência gerada nas manifestações é da esquerda, seus principais representantes, ou seja, os estudantes, “intelectuais” e militantes da USP, da UNE, do MPS e dos partidos comunistas em geral, se desviarão dessa responsabilidade tentando, agora, marcar a firme distinção entre os que seriam manifestantes “pacíficos” — ou seja, a reacionária massa burguesa que perambula pelas ruas, e na qual eles se misturam sem dificuldade, já que são todos filhinhos de papai — e os que não passariam de criminosos — que, em sua maioria, são mais pobres e, assim, pela lógica marxista, mais dignos de pertencerem à classe explorada. Um ou outro playboy desajustado está lá “curtindo a onda do pó”, meia dúzia de retardados da classe média está lá aproveitando a ocasião pra descontar sua raiva mal canalizada, e mais meia dúzia de militante marxista está lá cumprindo sua missão de insuflar revoltas populares, convocando todos para a guerra de classes. Seu “exército”,  porém, se constitui de marginais da periferia formados na “escola do rap”, do discurso que mistura puro banditismo com idéias marxistas de luta de classes (vide as idéias de guerrilha urbana de Marighella empurradas pelos Racionais MC's a todos os 'manos' e juvenis da MTV, o mesmo Marighella que também é exaltado em livros que enchem as vitrines de todo Shopping Center luxuoso). Mas não esqueçamos que esses marginais são apenas os frutos podres que envergonham suas famílias, as quais, apesar da baixa renda, na maioria das vezes se compõem de trabalhadores e cumpridores da lei.

A partir da nova perspectiva colocada, se os manifestantes violentos são aqueles identificados, tanto na mídia quanto nas redes sociais, como simples vândalos, saqueadores e até “infiltrados”, logo surge a grande pergunta: Quem, então, representaria a verdadeira esquerda? Os violentos ou os pacíficos? Mais importante ainda: sobre que razão fundamental se apoiaria o sentido mais profundo de todo o movimento? 

Seria essa razão fundamental aquela oferecida pela linha de pensamento marxista, segundo a qual a revolução “não será televisionada”, mas, sim, extremamente subversiva, inflexível, visceral, arrastando tudo num vórtice de terror e caos que só deverá acabar quando o poder total for transferido de uma vez por todas para as mãos do povo, dando cabo a todas as injustiças ainda existentes? Ou seria essa razão aquela conduzida pela classe média engomadinha e responsável, que, afinal de contas, está muito bem representada pelo William Bonner, pelo Datena, pelo Marcelo Rezende, pelo Neymar e por todos aqueles que repetem em coro “sou a favor da manifestação, mas de forma pacífica”, mostrando que seu comprometimento não vai muito além daquela vaga idéia de que “algo precisa ser feito”, “o povo está de olho, cobrando”, “o gigante acordou”, ou seja, sem um discurso concreto ou uma abordagem sociológica e econômica que lhes dêem suporte teórico (como no caso dos marxistas)?

Assim, antes de mais nada, se torna claro que existe uma certa disputa pelo monopólio das razões fundamentais dos protestos, e que a disputa se dá entre diversos setores da sociedade interessados em retirar dessa situação algum proveito político (mesmo que esse proveito fosse inteiramente “do povo para o povo”). Mesmo os “apartidários”, ao conclamarem que o movimento de protesto é, no grosso de sua composição total, constituído por uma camada apartidária de cidadãos brasileiros, eles já estão, evidentemente, tentando monopolizar a razão fundamental das manifestações — ora, se as manifestações são apartidárias, a razão fundamental é o apartidarismo, e isso teria sido determinado pelos que se dizem “apartidários”, e não por outros segmentos políticos que desejam atribuir razões diversas aos protestos; mas aí, os “apartidários” confessam que também buscam, sim, o monopólio das razões fundamentais. De qualquer forma, sabemos que há uma conturbada mistura de correntes ideológicas e partidárias no meio daquela confusa massa humana que grita nas ruas. E, ainda assim, objetivamente falando, algum grupo ou partido deverá ser o maior beneficiário da situação, muito provavelmente por conseguir canalizar toda a diversidade de anseios em uma única frente de representação política (mais pra frente ficará claro por que a idéia de “apartidarismo” é, em si, uma grande estupidez que só favorece a esquerda).

Eu não tenho dúvidas de que, por enquanto, o grupo que se encontra melhor posicionado neste jogo, controlando com destreza a razão fundamental das manifestações são os marxistas (e, conseqüentemente, o próprio PT). Ora bolas, foram eles os principais agentes que deram início a toda revolta! Para se comprovar isso, basta reparar no discurso que se tornou praticamente a linguagem padrão de qualquer manifestante: é a linguagem marxista, que trata da 'luta de classes' como um consenso universal indiscutível, que fala acerca da exploração do povo oprimido por uma malévola elite capitalista, que põe a idéia abstrata de 'autoridade' como a expressão de todo o mal do universo, e que assim demoniza a “classe política”, a “classe militar”, a “classe empresarial”, a “classe midiática”. E, sobretudo, é esse discurso que santifica a “classe do povo”, diluindo as responsabilidades de praticamente todos os indivíduos (os únicos seres reais, de carne e osso) que, assim, nunca têm culpa por nada, que podem sempre se abrigar na desculpa de que “está do lado do povo”, que podem sempre transferir a responsabilidade para alguém “lá de cima”. Mas essas pessoas que gostam de se abrigar sob a capa mágica do “povo” podem ser até mesmo os próprios políticos que, ao entrarem em sintonia com tal discurso (culpando o capitalismo, os banqueiros, os países desenvolvidos, os americanos, e ficando do lado do “povo”), receberão imediatamente uma identificação visceral da massa igualmente ignorante, inútil, malandra, cínica, mesquinha, passional, irresponsável...

Enfim, tudo isso é a idéia marxista de luta de classes sendo imposta para mentes frágeis, sem que se note o absurdo que é reduzir indivíduos concretos a categorias de coletividades abstratas. Essa é a plena vitória dos marxistas!

Enquanto isso, o que mais claramente se nota nos protestos é que, no meio de toda a diversidade de expressões que neles vemos, duas se destacam e, justamente pelo contraste que formam entre si, se tornam tão salientes à percepção geral: a expressão dos manifestantes “pacíficos” e a expressão dos manifestantes violentos.

E assim volto àquela pergunta muito incômoda aos esquerdistas que participam dos protestos: o que representaria a sua verdadeira face? Os rebeldes ideologizados até a espinha que desejam um tremendo levante popular, e assim dão apoio moral inclusive à massa de marginais alienada que está ali tentando saquear uma T.V. de tela plana (mas, pelo menos, argumentam os marxistas, está alimentando a dinâmica da luta de classes)? Ou a verdadeira esquerda seriam os jovens bem vestidos, bem educados, bem alimentados, que jamais desejariam que a “revolução” passasse dos cartazes ingênuos e das procissões pelas avenidas próximas de suas residências?

Respondendo e já mostrando a encrenca embutida nas respostas: 

1 - Se a verdadeira esquerda são os rebeldes violentos, então se admite que as manifestações têm sua razão fundamental, sim, naquilo que os marxistas colocam como a questão mais urgente, que é a tomada de poder por um partido comunista, o qual substituirá os atuais representantes do poder por líderes que teriam em si a expressão do povo, da classe proletária (alguém como um certo fulano octogenário de uma ilha caribenha aí). Mas, nesse caso, a esquerda assume, também, a autoria por toda a onda de violência e caos que vimos devastar, ao longo de vários dias, uma série de cidades brasileiras. Com essa confissão, também, ela perderia imediatamente o apoio maciço da população e da grande mídia (que pra ela não passa de “conservadores reaças”). 

2 - Mas se a verdadeira esquerda são os burgueses reacionários, ou mesmo os cidadãos pobres que mantêm um pensamento conservador (e, dessa forma, para o marxista, se colocam a favor da burguesia na luta de classes), os quais sentem ojeriza a qualquer forma mais radical e violenta de luta política, então a razão fundamental seria, sim, reacionária, hostil ao comunismo e ao regime da classe proletária; logo, hostil ao próprio “povo”, dirão os marxistas. Mas então, por outro lado, essa esquerda admite que ela não poderia sequer estar saindo às ruas pra exprimir indignação contra o atual sistema político, uma vez que esse seria resultado da estrutura vigente de poder, por sua vez sustentada pelo próprio pensamento burguês (ou liberal,  ou social-democrata, ou progressista, ou tudo mais que não tenha a ver com revolução violenta e abrupta). E mais, ela deveria reconhecer que está sendo estúpida e cínica por gerar a ocasião perfeita para tanta revolta e violência desnecessárias, quando somente manifestações bem organizadas e nos momentos oportunos poderiam representar essa expressão pacífica de insatisfação com o atual governo.

Então, resumindo, ou essa esquerda admite que é pacífica e se responsabiliza pela estrutura de poder burguesa e reacionária (dentro do discurso marxista que de repente ela resolveu abraçar), e então perde toda a legitimidade de sua própria causa, que até agora tem sido pressionar as autoridades ameaçando a paz de seus próprios concidadãos reacionários... ou, então, essa esquerda reconhece que busca a violência e o caos como forma legítima de alcançar seus objetivos políticos e, com isso, perde o grande apoio da população que até agora tem feito as passeatas “pacíficas, bonitas e festivas” que a mídia cobre com toda a pompa, conferindo uma aura de santidade moral à esquerda como um todo — aura com a qual, só assim, a esquerda poderia pensar em obter alguma vantagem prática da situação, seja em eleições democráticas, seja mesmo em futuros golpes comunistas (que é o que ela pretende fazer).

Mas então alguém dirá: por que a verdadeira esquerda não pode ser pacífica e, ainda assim, adotar o discurso marxista de luta de classes, ou adotar algum outro discurso semelhante mas que não envolva violência e sim um processo gradual de transformação das estruturas de poder, no qual o povo explorado luta contra a elite exploradora saindo às ruas para protestar? Bem, até pode, mas ocorre que essa esquerda é simplesmente isto que já está implementado na nossa sociedade e na nossa cultura há um bom tempo, ecoando nas vozes da grande maioria de nossos políticos, educadores, jornalistas, artistas, apresentadores, formadores de opinião, escritores, comentaristas, sociólogos, historiadores, professores, palestrantes, biólogos, ecologistas, empresários... e até uma parte dos religiosos! E se tem algo que sintetiza perfeitamente essa esquerda moderada é a própria Rede Globo. E se há algo que não incomoda de forma alguma o governo, a mídia ou quem quer que esteja no poder, é justamente essa esquerda moderada, pacífica, burguesa, liberal, que busca o progresso em pequenas e quase imperceptíveis medidas reformistas.

Pois é evidente que, se agora qualquer governante recuou no reajuste de tarifas do transporte público, ou se qualquer poderoso se sentiu pressionado com os atuais protestos e decidiu fazer discursos bonitinhos e temerários em favor dos manifestantes e prometer “mudanças”, não foi por conta de passeatas tranqüilas formadas por pais de família, por madames, por mauricinhos, por nerds, enfim, pela classe média comportada (seja de direita ou de esquerda moderada). A pressão veio quase que exclusivamente da violência! Será que isso não é óbvio? Quando vemos um manifestante com alguma placa que diz “desculpe pelo transtorno, mas estamos mudando o país”, o transtorno aí subentendido não é o simples protesto pacífico, legalizado, controlado, que não causa problema a  nenhum cidadão e sim à imagem de determinados políticos, mas o transtorno provocado por aqueles mesmos “vândalos” e “infiltrados” que, esses sim, estão colocando o governo como um todo em uma situação complicada perante a opinião pública. 

E os esquerdistas, mesmo aqueles que se dizem “pacíficos”, estão todos tirando proveito dessa violência, se gabando de conquistas que foram todas na base da mais agressiva intimidação, de confrontos com a PM, da depredação geral da cidade! Logo, a conquista só pode ser marxista, pois é a luta de classes que está promovendo essa “justiça” ao pressionar os governantes com tamanha agressividade. É o discurso marxista que está prevalecendo.

O mais importante que se deve perceber aqui é que há um canal muito sutil de cumplicidade entre os “pacíficos” e os violentos (e agora poderão entender por que faço questão de, nesse contexto, utilizar aspas nessa palavra). 

Se a passeata fosse planejada, organizada, combinando-se data e outros detalhes com as autoridades, em espaços públicos (mesmo grandes avenidas) fechadas para esse propósito, como já se faz muitas vezes, então o protesto seria aceito pelo Estado, nada nem ninguém correria o risco de ter sua integridade ameaçada, a mensagem do protesto seria reverberada pela mídia e pelas redes, e tudo ficaria em paz. Mas por que isso não surtiria efeito vantajoso nem teria qualquer utilidade para os marxistas? Porque só a quem interessaria esse tipo de protesto é justamente aquela esquerda moderada e progressista que já está no poder e não tem mais do que reclamar. Aliás, se tem algo de que essa esquerda moderada talvez pudesse reclamar é que o PSDB, a expressão mais acabada de esquerda moderada/progressista, está começando a sumir do mapa.

Mas como a manifestação, na prática, é violenta — e isso porque o desejo dos que deram início a ela é que fosse realmente violenta —, então ela interessa não a uma esquerda moderada, quanto menos à direita... ela interessa, mais do que ninguém, a essa esquerda radical, que busca mudanças abruptas, violentas, extremistas, que deseja ver o circo pegar fogo, que imagina que do caos supremo será erigida uma ordem inteiramente nova ('ordo ab chao' — 'ordem do caos').

Diante dessa situação aparentemente paradoxal, nos resta, na realidade, compreender qual é a real função dos manifestantes violentos e revolucionários que se dirigem às manifestações com o objetivo claro de promover o caos e a violência, e qual é a real função da classe média que comparece em peso nas manifestações, dizendo-se apartidária ou “esquerdista light” ou até conservadora/liberal, apenas com a intenção de “lutar por um país melhor”. Dentro do verdadeiro processo revolucionário elaborado pela elite esquerdista (formada por políticos, grandes empresários e “intelectuais”), os dois tipos de manifestantes têm um papel crucial e complementar para que a realização do objetivo comunista seja possível, e isso é o que tentarei demonstrar a partir de agora.

Se, como dito, os protestos se constituíssem apenas de passeatas pacíficas, o discurso marxista não ganharia força, pois estaria apenas beneficiando a classe burguesa reacionária (nesse caso o maior alvo dos protestos poderia ser a própria esquerda marxista que busca avançar em nosso país, quer dizer, o alvo poderia ser o próprio PT). Mas se os protestos se baseassem tão somente na tentativa de confronto com a polícia e em ataques diretos a prédios do governo, lojas, bens públicos e privados, então jamais eles teriam o apoio da população e da mídia (pois a revolução marxista de luta de classes seria vista completamente desnudada). 

Logo, a camada violenta do protesto serve para legitimar o discurso marxista de luta de classes, impregnando-o na linguagem corrente do senso comum de toda uma geração que passará a crer que o melhor tipo de governo é sempre aquele mais radical, mais anti-conservador, mais “do povo”, mais comunista, e que a guerrilha urbana é, sim, um meio eficiente de se alcançar qualquer meta. A camada pacífica, por sua vez, serve apenas para legitimar a simples existência dos protestos, que então passam a ser transmitidos por todos os meios de comunicação como um movimento pacífico e “apartidário” de toda a sociedade brasileira. E assim, com esse eficaz meio de propaganda, o discurso marxista se mistura ao discurso moderado, chegando até os cidadãos mais conservadores como se fosse um único bloco de idéias inocentes, “do bem”, aceitáveis até para os parâmetros mais reacionários (os jovens, então, são os mais vulneráveis nesse processo).

Um faz o trabalho que o outro não pode fazer. Os violentos têm a mensagem, os pacíficos têm o meio de propagá-la. E se você disser que os pacíficos estão apoiando ou dando cobertura para os radicais, eles irão jurar de pés juntos que nada têm a ver com esses, e até que os condenam com sincera veemência. Mas se você disser que os radicais e violentos venderam seus ideais por se aliarem aos burgueses da Rede Globo, eles também dirão que nada tem a ver com os manifestantes leite-com-pêra, e que agora estão até insatisfeitos com os rumos distorcidos que esses conferiram às manifestações. No fundo, ambos deveriam estar muito contentes com a presença um do outro, pois cada um faz sua parte dentro desse jogo extremamente cínico de encenações esquizofrênicas.

Por isso tudo digo que, se há um desafio para o esquerdista, é este: ao mesmo tempo em que ele deve estimular focos de revolta através do discurso tipicamente marxista de luta de classes, ele deve tomar cuidado para que, tão logo a revolta tome uma forma mais pungente à opinião pública, ela não seja mais associada ao discurso que, no início, o esquerdista utilizou para eclodir todo aquele processo social vulcânico. Falando assim parece até que se trata de um plano maquiavélico dos mais engenhosos; a verdade, porém, é que boa parte desse mecanismo de oscilação entre discursos (no caso, o violento e o pacífico) se dá de forma inconsciente, e a maioria dos próprios esquerdistas sequer nota que transita entre duas maneiras distintas de pensar, de raciocinar, de sentir, de agir. Eu, particularmente, costumo denominar isso de mente fragmentada, um fenômeno psicossocial cujo princípio se assemelha ao da dissociação de personalidade, mas ocorrendo numa outra escala, numa sintonia entre indivíduos e movimentos de massa. E, a propósito, de que outra forma seria possível um regime comunista se não fosse pela disseminação de formas mentais doentias entre a própria sociedade, entre a própria população?

Nesse ponto, é possível observar um dos aspectos mais curiosos do mecanismo de defesa do esquerdista: aquilo que uma mente saudável poderia imaginar que é a grande fraqueza do esquerdista,  na verdade é a própria fortaleza da esquerda como um todo. Aparentemente, a dissociação de personalidade, a alternância constante entre dois discursos antagônicos, a mente fragmentada, tudo isso deveria ser o maior indício de que um sistema moldado por tais fenômenos está condenado a cair nas trevas do pensamento racional. Em última análise, está mesmo condenado a cair, mas enquanto não cai é justamente desses fenômenos de fragmentação mental que esse sistema e esses movimentos revolucionários se alimentam e permanecem, por algum tempo, causando destruição, dor e morte. 

Em termos práticos, a coisa acontece da seguinte forma: você aponta para as contradições do discurso esquerdista, para os paradoxos do movimento esquerdista, esperando que eles sejam percebidos como dissonantes, mas a própria dissonância cria uma barreira que impede que a parte que está em contradição com a outra a enxergue como plena continuidade de um todo fragmentado na qual ambas estão inseridas formando um discurso paradoxal. Assim, não se pode dizer que a esquerda é perigosa e violenta, porque o próprio esquerdista dirá que, na verdade, é só paz e amor, e que só faz aquilo que o Datena também aprova. Nem se pode dizer que a esquerda está representada, no final das contas, pela mídia e pelo governo que sempre atendem a seus apelos e estão do seu lado lucrando juntos, senão ela dirá que tudo isso nada tem a ver com o verdadeiro ímpeto revolucionário de mudança radical e violenta, e sim com mais alguma tramóia da direita. O esquerdista está, dessa forma, protegido pela ambigüidade de discursos contraditórios que vêm ao seu socorro sempre que ele se sente encurralado por algum argumento lançado pelos seus críticos, os conservadores.

Logo, quem o representa? Qual sua verdadeira face? Nenhuma, ou melhor, qualquer uma que convenha no momento. Ser esquerdista é não ter um lado definido a não ser aquele que o favorece a cada instante, que lhe permite dar vazão a todos seus desejos e caprichos. Se ele cisma de pôr fogo em um ônibus, deixe-o, pois ele está salvando o mundo, lutando contra os poderosos! Mas se esse mesmo sujeito agora quer condenar quem ateia fogo a bens públicos e privados, aplauda-o, porque agora ele é legal e bonzinho! Quer dizer, ele não passa de uma simples criança mimada que deseja estar sempre com a razão, faça o que fizer, resulte suas ações no que resultar. Não quer pagar nenhuma conta, não quer arcar com nenhuma despesa.

Mas vale dizer que uma insignificante minoria radical e bastante decidida (e completamente lunática) de fato permanecerá o tempo todo pensando que a guerra é do 'tudo ou nada', e que a manifestação foi corrompida pela burguesia, e que tudo está arruinado, e que o mundo é horrível, e que a vida é uma causa perdida. Essa faceta esquerdista radical tem seu maior porta-voz, hoje, no pensador russo (e conselheiro geopolítico de Vladimir Putin, presidente da Rússia) Aleksandr Dugin, muito aplaudido no auditório do departamento de Geografia da USP, ano passado. Não deixem de conferir suas idéias, inclusive no debate travado entre ele e o Olavo de Carvalho (famoso pela defesa do pensamento conservador), e tenham a oportunidade de verificar por si mesmos o embate entre idéias conservadoras e idéias revolucionárias (e deixem de formar suas opiniões, seja sobre um sujeito, seja sobre o outro, na base do que coleguinhas exclamam por aí). E se deseja um texto curto mas bastante sintético e revelador do pensamento de Aleksandr Dugin, este aqui é ótimo (para quem souber inglês, pois traduções do russo para o português são raras): http://arctogaia.com/public/eng/gnostic.htm

Enquanto isso, uma extensa maioria pacífica, mas que chegou atrasada nos protestos e se encontra bastante desinformada, de fato continuará pensando que aquilo nunca passou da iniciativa de pessoas bonitinhas como ela, que só queriam sair às ruas para manifestar insatisfações genéricas e clamar por uma justiça genérica, e que os violentos surgiram depois para estragar tudo.

Mas a parte intermediária, geralmente a garotada de esquerda, os universitários, os “intelectuais” de botequim, os jovens “politizados e engajados”, que ora estão se juntando à massa com seus cartazes de “paz”, ora estão confrontando a PM e plantando alguma semente de baderna, esses é que dão o exato tom das manifestações. Esses sujeitos compreendem de forma quase instintiva que o intuito das manifestações é sempre provocar a polícia, para que a população seja dispersada com bombas de gás e balas de borracha, e depois se faça de vítima, corroborando, assim, o discurso marxista de que toda autoridade é malvada, de que o PSDB é fascista etc. Porém eles buscam dar a impressão de inocência, como se estivessem apenas caminhando pacificamente e fossem atacados de surpresa pelo “braço armado do Estado opressor”. Eles sabem muito bem que até existe um monte de guarda mal intencionado, mas que esses nem se comparam em número com a maioria dos policiais que simplesmente cumpre seu trabalho de dispersar turbas fora de controle e de impedir o acesso a determinadas vias de importância vital para o tráfego, quando não a  estabelecimentos privados e a sedes do governo. Mas o esquerdista se encaminha voluntariamente para esses locais, e como não consegue ultrapassar alguma barreira policial (que permanece imóvel e em silêncio), lança pedras, dispara morteiros, xinga, provoca, parte pra cima como pode, e depois espera a reação lógica da polícia: botar todo mundo pra correr.

No fundo, o que eles buscam é o pretexto ideal para que ocorra todo tipo de tumulto, de vandalismo, de confronto generalizado entre polícia, militantes, ladrões, psicopatas e tudo que apareça ali no meio com o ânimo mais exaltado possível. E quem está no meio disso, mesmo sem provocar ou agredir ninguém, só pode ser cúmplice, pois poderia estar em casa tentando se informar mais, estudando história (além de sua versão marxista, claro), pesquisando as mais diversas correntes de pensamento, procurando conhecer todos os lados, em vez de servir de massa de manobra marxista, dando cobertura para os rebeldes.

Porém, ao mesmo tempo que os esquerdistas querem essa violência para legitimar o discurso marxista, eles também querem sair bem nas lentes da Globo, da TV Cultura, da Record, da Band e do SBT (para depois ainda reclamarem dessas mesmas mídias). E nada contribui mais para que esse desejo absurdo seja “realizado” do que a mente fragmentada, do que o discurso ambíguo, do que aquele mecanismo psicológico de defesa que permite ao esquerdista se enxergar como coisas distintas a cada instante e assim parecer que está sempre com a razão.

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Mas agora nos encaminhemos para o 'grand finale', respondendo à pergunta mais intrigante aqui: quem, enfim, se beneficia com toda essa situação?

Os que se sentem mais satisfeitos com o resultado final e concreto das manifestações e das grandes revoltas populares são os sujeitos bem informados sobre o plano completo, e que, dessa forma, conduzem tal processo dialético como um todo. São aqueles que estão atentos às duas pontas, presentes nos dois pólos da situação: em uma, incentivando e preparando o militante ativo, engajado, consciente da luta de classes, que, por isso, terá como importante missão implantar o caos mais violento possível na cidade (“organizar para desorganizar” é o que ensinam os marxistas); na outra, estimulando e se misturando entre os “manifestantes pacíficos”, agora deixando de reclamar que a manifestação perdeu seu sentido revolucionário de conquista política pela via destrutiva, para então simplesmente se beneficiar da sangria que eles provocaram na sociedade, e que se refletirá logo mais nas urnas, favorecendo os partidos e grupos de esquerda dos quais eles mesmos participam ou são aliados.

Após algum tempo, quando a situação política estiver extremamente desgastada por conta de um governo corrupto e descontrolado, aí sim eles pensam em partir para o golpe comunista, alegando que esse governo é ameaçado pela “direita infiltrada” e pelos “capitalistas” (o mais importante é nunca assumir a culpa por nada, mas atribui-la à direita, mesmo quando não vemos um rastro sequer dela na política, no máximo em um ou dois sujeitos). E, para esse esquerdista esperto, tudo isso é ótimo, pois significa que talvez ele garanta algum cargo de prestígio no governo, isto é, significa que ele provavelmente ficará com uma fatia mais gorda do bolo, já que faz parte da elite de governantes revolucionários, a única classe que realmente se beneficia em todas as revoluções.

Alguém poderá lembrar, entretanto, que em 1964 foi a direita quem deu um golpe sob a alegação de ameaça comunista. Para esse tipo de gente devemos lembrar, igualmente, que o Brasil, sendo apenas um país entre outros, não abriga todos os limites do planeta, logo uma análise geopolítica deve se estender para além das fronteiras nacionais. Naquele contexto de bipolaridade mundial, os países que decidiam se alinhar à URSS tomaram rumos que, mais tarde, se viu que foram os piores imagináveis, enquanto os que decidiam se alinhar aos EUA (como foi o caso do Brasil) tiveram um fim bem mais glorioso, mesmo com todos os problemas de repressão, de economia instável, de turbulências políticas. A questão é que a alternativa não era entre uma ditadura militar e a continuidade da democracia; era entre uma ditadura militar de direita ou uma ditadura comunista! E entre uma e outra, é evidente que aquela de índole reacionária sempre será melhor que a de índole revolucionária. Para comprovar isso, basta fazer a contabilidade de mortes da ditadura brasileira em relação às ditaduras de esquerda, como a cubana, a soviética, a norte-coreana, a cambojana, a chinesa-maoísta etc.

Ninguém deveria apoiar ditadura de espécie alguma, mas, convenhamos, a vida é feita de escolhas possíveis, não apenas de escolhas que desejamos, e, nesse caso, o golpe militar foi muito menos prejudicial do que seria o golpe de esquerda. Também podem alegar que não havia essa ameaça comunista, que isso é um fantasma produzido pela paranóia direitista, mas é muito curioso que os mesmos que dizem isso são aqueles que apoiaram a própria guerrilha comunista em curso no Brasil (formada por imagens holográficas?), que aplaudem até hoje o sucesso da Revolução Cubana (instaurada por espíritos fantasmagóricos?) e que muito provavelmente derramam rios de lágrimas pelas vítimas do General Médici e do General Pinochet enquanto não derramam uma sequer pelas vítimas do Fidel Castro e do Josef Stalin, embora essas sejam em número muito superior ao daquelas.

Mas, voltando, o que essa esquerda mais perversa deseja, enquanto não pode simplesmente impor um regime ditatorial do tipo cubano ou soviético, é ir, aos poucos, desestabilizando as bases morais da sociedade através desse jogo de esfarelamento do espírito de seus cidadãos, proliferando discursos marxistas e outras noções distorcidas da realidade, pelos quais todos passam, de forma cada vez mais intensa, a olhar com antipatia para o “conservador de direita” e com simpatia para o “esquerdista revolucionário”.

Portanto a revolução nada tem a ver com esquerdistas sonhadores que se arriscam tomando bala de borracha na bunda e se engasgando com gás de pimenta (ou seja, os perfeitos idiotas úteis), nem tem a ver com aqueles jovens fofinhos que postam no facebook mensagens de apoio aos protestos ou fotos deles mesmos no meio das manifestações “pacíficas”, como se essas coisas não fossem mais que baladinhas ou alguma festa carnavalesca qualquer. 

Essa revolução tem a ver com políticos profissionais, bem relacionados, que detêm os contatos certos, que se encontram nas posições estratégicas do esquema comunista, e que esperam que, tão logo o regime se concretize, eles possam se fechar numa bela cúpula de seres iluminados para decidir os novos rumos da nação. Claro que esses sujeitos não passam de um bando de idiotas prepotentes que brincarão de príncipes maquiavélicos por algum tempo até a própria sociedade embrutecida que eles ajudaram a criar estiver tão pobre, decadente e infeliz que ela mesma desistirá de ser usada com seu consentimento por esses sujeitos e passará para o lado dos “inimigos de classe”, ou seja, os burgueses, os conservadores, os “reacionários” — como fez, por exemplo, a Alemanha Oriental no contexto da Guerra Fria, ao abandonar a URSS e passar para o lado dos EUA.


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Texto publicado no blog 'Destrurir', dia 22 de junho de 2013.